domingo, 20 de janeiro de 2008

Salve o cinema - Makhmalbaf (1995)

::Ensaio 01
Salve o cinema: O filme além do próprio filme
Por André Mintz, Débora Pessali, João Vitor Leal, Laura Guimarães

"The soul of our people is in this filmtheir hope....
It shows that not much of a role has been given
to them in society.... The distance between
their hope and their hopelessness could
be switched by one sentence."
Mohsen Makhmalbaf

"Desemaranhar as linhas de um dispositivo é,
em cada caso, traçar um mapa, cartografar,
percorrer terras desconhecidas."
Gilles Deleuze


Mohsen Makhmalbaf desponta no meio da multidão e, equilibrado sobre um muro, munido de um mega-fone, explica a todos as condições em que se realiza a seleção de atores para seu filme. De todos aqueles presentes, milhares, atraídos pelo anúncio em jornal, apenas mil poderiam participar do teste e, destes, cem seriam selecionados para atuar. Aos montes, aquelas pessoas vieram ali atraídas pela possibilidade de conseguirem um papel em um filme de Makhmalbaf, um dos mais importantes e populares diretores do Irã. Ocupando todo o espaço visível pela câmera, escutam as diretrizes colocadas pelo diretor. E eis que, falando a todos, ele os saúda: “Sejam bem-vindos ao próprio filme”.

O que significava, para aqueles presentes, adentrar num espaço fílmico como aquele a que Makhmalbaf os recebia? As suas boas-vindas, afinal, não indicam uma passagem entre um mundo da vida e um mundo fílmico, nem mesmo distinguem esses mundos. A passagem que se deu, ali, fora efetuada meramente pelo acionamento da câmera, de modo que as saudações de Makhmalbaf, enunciadas assim, à multidão ansiosa para a seleção de atores ainda por ocorrer, parecem apenas acentuar a precariedade com que o filme se constitui naquele momento, ao que tudo indica, “pré-fílmico” – pois o filme que se coloca no horizonte daquelas pessoas, da multidão que abarrota a própria imagem, se projeta somente no futuro. As câmeras, mergulhadas em meio a esta multidão, não são capazes de organizar aquilo que registram, fazendo desfilar constantemente os rostos pela tela. Aqui e ali conseguimos vislumbrar algo mais dos personagens. Os irmãos de óculos escuros despontam na indiferença dos perfis traçados. Com efeito, o filme tinha ali seu início, numa precariedade que parece ser sua própria opção. Tomadas e deixando-se levar pelo momento, as câmeras já há muito haviam deixado a segurança do capô do carro que, no primeiro plano do filme, guiava o travelling ao longo da fila; e a fila mesma já não mais se desenhava.

CORTE. Do caos à tranqüilidade do interior da sala onde se realizam os testes, opera-se uma inversão: se, num primeiro momento, as câmeras e o diretor são tomados pela multidão, é agora a multidão que, a conta-gotas, adentra o lugar estrategicamente ordenado sob o domínio das câmeras e do diretor. Aprisionados pelo alcance da iluminação, oprimidos pelo escuro vazio do entorno, os candidatos se encontram, no interior da sala, expostos a uma visibilidade extrema, em que, mesmo quando as câmeras se voltam para o diretor, os espelhos, às suas costas, fazem com que permaneçam vulneráveis ao olhar das câmeras.

Ali, ao longo de praticamente todo o filme, os aspirantes a atores respondem a uma série de questões, solicitações e arbitrariedades de um diretor extremamente rigoroso. Entre candidatos e diretor, uma ampla mesa se coloca como barreira – ao menos a princípio – de isolamento entre um e outro da relação. Submetidas, invariavelmente, a esta situação que já de princípio estabelece sua vulnerabilidade, estas pessoas são ainda coagidas pela atitude autoritária do diretor e pelas tarefas que lhes são demandadas, sem que cheguem a saber se foram mal ou bem realizadas. O diretor, então, lhes solicita que chorem dentro de dez ou trinta segundos, para comprovarem suas capacidades de atuação, ou seu amor pelo cinema – tanto faz. Enquanto razões que fortificam o acuamento dos candidatos, tanto uma quanto outra valem.

Este espaço da seleção de atores, que em toda sua construção parece apontar para o controle – dado o intimidante olhar que se lança sobre os que adentram – não deve ser compreendido, no entanto, como uma instância de determinação absoluta dos acontecimentos ou como a estruturação de uma distância entre câmeras e mundo. Trata-se, pelo contrário, de um construto ambíguo, não de todo explicado pelo controle. No espaço delimitado no chão, dentro do qual os candidatos devem permanecer – cercados de todos os lados, feridos pela dureza da iluminação e pressionados por Makhmalbaf –, lhes é exigida uma reação, que não se faz previsível nem tipificável. Desta forma, as restrições impostas à atuação dos candidatos constituem precisamente os catalisadores responsáveis pela emergência de novos elementos na situação. É neste sentido que se busca, na noção de dispositivo, subsídios para compreender a operação efetuada pelo filme de Makhmalbaf.

Em termos gerais, o dispositivo pode ser definido como o arranjo dos elementos de determinada obra, que, de alguma forma, afeta a realidade com que toma contato. No campo do cinema, ele por vezes surge diretamente atrelado a seu dispositivo técnico – tanto da câmera quanto da montagem e da sala escura – como baliza ao pensamento em torno da relação entre espectadores e cinema, psique e imagens[1]. Num outro movimento, o dispositivo é pensado, a partir de um resgate do cinema-verdade francês, como um arranjo que o filme elabora para, no momento da filmagem, interagir com o mundo[2]. Equivale a dizer que, de uma à outra instância, do set de filmagem à sala de cinema, o dispositivo é este conjunto de linhas que tensiona as relações entre os atores envolvidos – sujeito filmado, cineasta, imagens e espectador – interpondo-se entre um e outro, prescrevendo-lhes posições, deslocando-os e sendo por eles deslocados.

Esboçar o traçado destas linhas em Salve o cinema não é uma tarefa simples. Afinal, a construção do dispositivo deste filme não se limita aos elementos técnicos comuns aos filmes em geral; trata-se de uma construção particular. A materialidade básica do dispositivo cinematográfico, descrita a partir dos elementos fundamentais da imagem formada – campo, contra-campo, extra-campo, quadro, moldura etc. – e suas implicações, não dá conta do construto do filme de Makhmalbaf. Sobrepõem-se, no filme, procedimentos diversos em que mesmo a câmera, a equipe e o diretor têm seus papéis deslocados e variáveis. Dentro deste dispositivo particular que constrói, Salve o cinema prescreve um papel para tais elementos cujo efeito último não se resume ao filme em si, ou às imagens que resultam do “acontecimento-filmagem”. É dessa maneira que não se pode dizer do dispositivo de Salve o cinema sem tomá-lo em sua particularidade. Deleuze, discorrendo sobre o dispositivo a partir da obra de Foucault, chama a atenção para inexistência de uma forma estável ou definida dos dispositivos. Escreve ele: “É preciso instalarmo-nos sobre as próprias linhas, que não se contentam em compor um dispositivo, mas atravessam-no, arrastam-no, de norte a sul, de leste a oeste ou em diagonal[3]”. É sobre esta visão, portanto, que toma o dispositivo por um caráter processual e instável, marcado por tensões que o deslocam a partir do seu próprio interior, que se propõe observar os movimentos efetuados por Salve o cinema na construção de um dispositivo que não se deixa solidificar em contornos precisos.

Vale ressaltar, logo no início desta empreitada, que traçar tais linhas, esboçar uma geografia deste dispositivo, não se coloca como uma finalidade última da abordagem proposta, visto que identificar a maneira como ele se constitui não satisfaz o esforço de compreensão do filme. Afinal, por esta operação, corre-se o risco de tomar o filme como um simples experimento que se justificaria por si só – o que não corresponde às propostas do diretor Mohsen Makhmalbaf com este filme, e mesmo com outros de seus filmes. A centralidade da noção de dispositivo na abordagem proposta se justifica, no entanto, quando se leva em consideração a inserção deste filme em uma trilogia que Makhmalbaf dedica ao próprio cinema, na qual se incluem os filmes O ator e Era uma vez no cinema[4]. Nestes filmes, o cinema e, assim, o dispositivo fílmico – compreendido em um sentido amplo, não limitado aos aspectos técnicos e gerais do cinema – assumem um papel fundamental. É necessário que esta abordagem busque, portanto, incluir a questão do dispositivo no sentido mais forte do mundo que o atravessa, um sentido que revele toda a permeabilidade do dispositivo ao seu exterior. Para tanto, é interessante retomar as possibilidades já aventadas pela teoria do dispositivo, na tentativa de compreender melhor a operação particular efetuada por Makhmalbaf em Salve o cinema.

A princípio, a própria definição de dispositivo nos permite perceber bem a ambigüidade da situação construída pelo filme, na qual de um alto controle deriva um amplo grau de indeterminação. Na noção particular de dispositivo desenvolvida por Cezar Migliorin para tratar dos “filmes-dispositivo” – como ele se propõe a chamá-los –, o dispositivo é entendido na combinação destes dois extremos. Segundo ele:
O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação de atores e de suas interconexões[5].

A situação construída no filme de Makhmalbaf se realiza precisamente nesta complementaridade proposta por Migliorin. De um lado, o diretor, sua equipe e a aparelhagem cinematográfica; de outro, os candidatos a atores, não submetidos a um script e cuja atuação não se restringe a um campo limitado de expectativas. Portanto, longe de se constituir como um sistema hermeticamente fechado que, à maneira de um experimento científico, busca isolar variáveis com o intuito de verificar uma ou outra hipótese, o dispositivo é justamente uma operação que busca a novidade inventiva, deslocando o foco das investigações: da compreensão do eterno, para a apreensão do novo[6]. Pela via da construção de uma situação preparada – na qual os elementos espaciais e o papel desempenhado por Makhmalbaf ocupam uma posição central –, este dispositivo ativa a realidade e assim realiza potencialidades que não se dão a ver de modo espontâneo na vida cotidiana – no caso, as respostas de cada candidato a ator àquele autoritarismo, ou mesmo algo de si que eles se permitem revelar diante daquela situação. Os acontecimentos produzidos não são calculados ou roteirizados, mas apenas se projetam, potencialmente, num horizonte de indeterminação visado pela construção do dispositivo. É assim que, tomadas de assalto pelas solicitações do diretor, duas garotas acabam por assumir uma postura de insubordinação como resposta à arbitrariedade de Makhmalbaf, mudando o rumo dos acontecimentos engendrados pelo dispositivo – elas se recusam a chorar, criticam a autoridade do diretor e a situação por ele construída; quando lhes é solicitado rir, riem de Makhmalbaf. Num momento anterior, em meio aos vários homens que atuam como em uma cena de ação, regidos por Makhmalbaf, surge um rapaz que se recusa a mimetizar sua morte ao gesto do diretor. Chamado ao centro, diz não gostar de filmes de ação, mas sim de melodramas. Contudo, recusa-se a chorar. Recusa-se a rir. “Não sou ator”, diz. A câmera se aproxima de seu rosto, isolando-o de todos os demais. “Diga algo sentimental”. Ele responde: “Eu te amo”.

Makhmalbaf se utiliza, assim, de um controle máximo do instante da suposta seleção de elenco para provocar situações de não-controle. A insubmissão dos candidatos não é de todo imprevista, mas desejada. Para além do controle do dispositivo construído se encontram imprevistos e, efetivamente, os gestos performados pelos candidatos em seus atos de insubmissão. Deve-se compreender, pois, que a proposta de Salve o cinema não se dá gratuitamente, num experimento que busque vislumbrar reações curiosas de pessoas colocadas numa situação desconfortável. A natureza de experimentação proposta é bem outra. Trata-se da criação de uma situação hostil por completo, que não busque a conformação dos indivíduos ao molde proposto, mas os incomode de tal forma a fazer da insubmissão, do escape a este molde, a única resposta possível às contradições e ao totalitarismo do diretor. Forçando à insubmissão, Makhmalbaf exige destas pessoas uma postura política, uma reação à arbitrariedade com que ele os julga e interpela. Quando a moça que quer entrar no filme apenas para que tenha a oportunidade de viajar para o exterior e encontrar seu namorado deixa a sala, o diretor pede que a tragam de volta, mantendo a pressão exercida, sem deixar que ela escape até que fortaleça sua posição de oposição ao próprio diretor. Assim, trata-se de uma hostilidade provocadora, mas não da submissão, e sim da insubmissão – algo que assume uma importância fundamental quando se leva em conta que submissão é o próprio sentido da palavra islã. Fortalecendo uma posição autônoma dos candidatos, o dispositivo construído assume um papel político forte na medida em que sugere um questionamento dos valores religiosos que se colocam como a própria lei daquele país, sob o governo de um regime fundamentalista islâmico.

Mais do que produtora de atos de insubmissão, contudo, esta relação de poder, em Salve o cinema , desempenha dois papéis que se misturam. Se, de um lado, é pelo extremo controle que o dispositivo constitui seu campo de indeterminação, é pelo mesmo controle que ele se torna capaz de registrar a emergência de tais acontecimentos, apanhando-os no caráter transitório de sua existência. Retomando o exemplo do rapaz que prefere o melodrama ao filme de ação, é somente pelo preparo do dispositivo para apanhar seu gesto de insubordinação que se torna possível a sua figuração no filme, pois sua reação não podia ser de todo prevista pelo dispositivo. Mas eis que tais papéis se misturam uma vez que, convocado ao centro, o rapaz é confrontado com a câmera, que se aproxima de seu rosto a interpelá-lo de perto. Makhmalbaf pede a ele que ria e, no seu gesto de recusa, por um momento, ele quase se entrega no esboço de um sorriso, captado pela câmera. Não é possível, e nem desejável, nesta passagem, distinguir os papéis de interpelação e de registro desempenhados pela câmera. Afinal, parece ser a aproximação da câmera de seu rosto que quase o desarma, quase o deixa intimidado pela situação construída. Pelo próprio fato de ser registrado, portanto, o curso do acontecimento se transforma.

Na proposição de Deleuze, os dispositivos se constituem enquanto máquinas de fazer ver e de fazer dizer. Neste sentido, as curvas de visibilidade por eles implicadas – o dar a ver­ os objetos – se colocam como um processo inerente à interioridade do dispositivo, no qual as referidas instâncias de produção e registro dos acontecimentos se misturam. Nas formulações de Deleuze:
A visibilidade não se refere à luz em geral que iluminara objetos pré-existentes; é formada de linhas de luz que formam figuras variáveis e inseparáveis deste ou daquele dispositivo. Cada dispositivo tem seu regime de luz, a maneira que esta cai, se esvai, se difunde ao distribuir o visível e o invisível, ao fazer nascer ou desaparecer o objeto que não existe sem ela[7].

Desta forma, a existência dos objetos é compreendida como condicionada pela visibilidade que eles alcançam por meio do regime de luz engendrado pelo dispositivo. E se tornar-se existente e tornar-se visível são compreendidos como um mesmo processo – resultante da distribuição de luzes e sombras pelo dispositivo –, compreende-se como a produção dos acontecimentos e o seu apanhar na contingência do instante se confundem no dispositivo de Salve o cinema.

As câmeras compreendem bem este duplo movimento efetuado pela face de controle do dispositivo. Freqüentemente enquadrando-se umas às outras, elas se fazem agentes, de modo que a situação construída não passa incólume à sua presença. Elas, ali, representam uma dimensão de vigilância, de uma visibilidade extrema da qual nenhum gesto, nenhum micro-acontecimento conseguiria escapar. É em função desta configuração do dispositivo que agem os sujeitos, cientes do fato de que suas ações, naquele espaço, encontram-se sob um regime de exposição que as amplia para além das proporções que elas teriam noutra situação qualquer. Assim, da mesma forma que a pressão exercida pelas câmeras catalisa a performance dos candidatos, ela é capaz de inibi-la. Em certo momento, uma moça que tem dificuldades em chorar para atender ao pedido de Makhmalbaf afirma, lançando um olhar para o refletor: “Costumo chorar com facilidade, mas aqui...”. A inserção desta fala no filme torna evidentes os constrangimentos que o dispositivo impõe, chamando a atenção, indiretamente, para si próprio. Desta maneira, tal configuração do dispositivo, pronto a apanhar de súbito as precipitações de seu interior, constitui o gesto próprio de sua operação de capturar, da ação transcorrida, o contingente. Do gesto da câmera como desbravadora da multidão – que é aquele da câmera sobre o capô do carro, no início do filme – ao estabelecimento de sua relação com o mundo num espaço e num tempo circunscritos pelos instáveis limites que os contorna, desloca-se a natureza do objeto filmado. O dispositivo deixa de visar o Verdadeiro, porque na medida em que reconhece o caráter contingente dos acontecimentos que registra – ao mesmo passo que os produz –, o que ele realiza é menos a documentação de um real pré-existente e mais a afirmação de uma realidade que emerge da sua ação sobre o mundo[8]. Em consonância com esta noção desdobrada de Deleuze, escreve Cezar Migliorin:
Há algo que se passa, que acontece, que ganha realidade e que não existe sem o filme; uma fala, um movimento corporal, um pensamento sobre si e sobre o outro. O que está para ser documentado é uma contingência, ou seja: algo que pode ou não ocorrer. O que o filme-dispositivo se propõe a fazer é criar mecanismos para eventualmente captar o que é contingente. O interesse deste tipo de obra é no acontecimento, não na necessidade[9].

Toda a estrutura criada em Salve o Cinema almeja a ativação de um real que urge nos acontecimentos engendrados nas linhas desenhadas pelo dispositivo, sendo estes acontecimentos confrontados com próprio dispositivo na medida em que ora consentem com ele, ora o subvertem. Neste sentido, Salve o cinema adota o contingente em detrimento do narrativo; o filme se desenvolve pela sucessão de acontecimentos que só se unem pelo dispositivo que os produz. Se aquilo que o dispositivo registra é o que ele mesmo produz, seja pelo simples ato de registro, seja pela combinação deste com outros processos, não há como se falar, no filme, da emergência de um real puro.

Salve o cinema, dessa forma, coloca em crise toda tentativa de separação entre o real e o ficcional. A todo o momento, a contraposição entre dispositivo e mundo se dá pela interação entre uma parte de construção e uma de indeterminação, da qual deriva, na contingência do instante, um acontecimento. Assim, do atrito entre uma e outra face do dispositivo, surge um terceiro que, pela complementaridade de uma e outra face, guarda características de ambas, e de forma indistinta: simultaneamente construído e espontâneo. Neste cenário, o espectador é colocado numa situação de constante desconforto, não necessariamente por uma incerteza entre o que é fabricado ou natural, mas por, em nenhum momento, lhe ser permitido situar-se de forma tranqüila num ou noutro regime. Mesmo nos momentos em que, a convite do diretor, os candidatos são convocados a interpretar cenas de ação, de guerra, de faroeste, a representação não ultrapassa o seu caráter lacunar, que não permite que deixemos de reconhecê-la como tal – mesmo neste outro registro, os candidatos permanecem na qualidade de pessoas comuns, de amadores.

Ao comentar este peso que a ação do dispositivo coloca sobre o acontecimento em si – o caráter contingencial do acontecimento e a ativação da realidade pelo dispositivo –, Cezar Migliorin chama a atenção para uma operação temporal que seria implicada pelo dispositivo. Sua abordagem, contudo, toma as experiências dos dispositivos em filmes narrativos, o que não é o caso de Salve o cinema. Ele escreve:

Se o que está sendo narrado é um encontro, um efeito de encontros entre corpos colocados em contato por um dispositivo, podemos falar de um presente absoluto que se dá quando o dispositivo está em ação. O que está sendo narrado, documentado, não existe fora do momento da ação do dispositivo. Não tem futuro nem passado. Dissolve-se quando o dispositivo é desarmado [...]. O acontecimento produzido via dispositivo não explica o passado – nem das pessoas, nem dos personagens, nem dos lugares – nem dá pistas para o futuro[10].

Se esta citação explica a emergência no dispositivo de acontecimentos que não poderiam ocorrer em qualquer situação, sua afirmação de um presente absoluto do dispositivo, cujos acontecimentos não possuiriam qualquer conexão entre um passado e um futuro, sugere, por outro lado, um fechamento do dispositivo sobre si mesmo. Tal sugestão parece excluir toda relação do dispositivo com uma exterioridade, com o próprio mundo que o abarca. Para o cinema documentário, na medida em que representa a possibilidade de interpenetração entre filme e mundo, esta exterioridade não pode ser perdida de vista. Em Salve o cinema, de fato, ela não só surge em imagens do exterior da sala, intercaladas aos momentos da seleção de atores, como permanece presente mesmo no interior da sala da seleção de atores. Assim como do máximo controle deriva um amplo grau de indeterminação, da máxima contingência deriva uma realidade mais ampla, que não se caracteriza pela necessidade – como antípoda da contingência –, mas que também não se resume ao gesto acidental.

Este movimento de derivação de uma realidade mais ampla a partir da contingência do dispositivo se evidencia, por exemplo, na cena em que Makhmalbaf pede a duas garotas que representem o momento em que retornariam às suas casas para contar a seus familiares que haviam sido aprovadas na seleção. Ainda que a precariedade do dispositivo não nos deixe ser tomados de todo pela representação – constantemente frustrando nossos movimentos de entrada na cena – a imagem não se oferece como uma superfície que apara nosso olhar, sem deixá-lo ir além. Pelo contrário, na medida em que as garotas encenam o acontecimento possível que se desenha opera um deslocamento do nosso olhar – que se suspende, porém, a meio caminho. Sem se deter, assim, na encenação das garotas, o olhar que se projeta sobre a cena é colocado em trânsito entre aquele momento e outro que se projeta no futuro – em parte atado ao presente, mas atraído pela cena imaginada que o põe em movimento.

Não se trata, por isso, de descartar o que antes se disse a respeito da impossibilidade de se separar os acontecimentos dos dispositivos que os produzem, mas, sim, de compreender como a mais restrita e controlada das situações é capaz de produzir acontecimentos que se projetam para além dos limites que lhes são impostos. O regime de visibilidade implicado pelo dispositivo de Salve o cinema, portanto, no seu movimento de apanhar os acontecimentos, não deve ser tomado como uma visibilidade total. O que por meio dele se dá a ver é tão somente a contingência – atrás da qual reside, oculta, qualquer coisa mais além. Desta maneira, o potencial do dispositivo de Salve o cinema encontra-se em fazer aflorar estes gestos e falas na contingência de um momento determinado. Por esta operação, o filme nega sua irredutibilidade ao presente dado, ao interior daquelas quatro paredes. O dispositivo, assim, não se fecha sobre si mesmo como realidade fílmica autônoma, pois, na interpelação dos indivíduos que se submetem a ele, os acontecimentos ali produzidos se projetam, como vetores, a uma realidade exterior a ele próprio, exterior ao filme.

Deste ponto é possível retornar à compreensão proposta do dispositivo para a abordagem de Salve o cinema. Trata-se de um detonador de experiências fortes que, já no momento da filmagem, transbordam os limites do próprio filme, atuando de forma conscientemente política, e é esta consciência que sustenta a homenagem ao cinema feita por Makhmalbaf, que o compreende como ferramenta transformadora e que, assim, se justifica somente em seu contato com mundo. Makhmalbaf, pouco antes de terminar o filme, saindo da sala da sala da seleção, afirma que há, no cinema, espaço para todos. Desta maneira, ele desconstrói a própria idéia da seleção de atores, retomando as saudações do início – quando ele concede entrada a todos aqueles que desejam entrar no filme – e, ao ultrapassar os limites da sala, abandonando a câmera e saindo das delimitações do campo que ela recorta, sugere de imediato o mundo que se encontra além do filme.

O próprio ambiente de uma audição já sugere uma implicação necessária entre estes dois espaços, entre filme e mundo: quando Makhmalbaf solicita aos candidatos que chorem, as motivações que ele aponta deslizam entre uma prova de amor ao cinema e a demonstração de capacidade técnica – deslize que, a princípio, parece apenas fortalecer a arbitrariedade de sua atitude. Porém, quando é chamado à cena um ator profissional para demonstrar tal capacidade, não se sabe mais se o que ele demonstra é o amor pelo cinema ou a técnica. À medida que seu choro evolui, ele passa a ser consolado por pessoas a seu redor, e Makhmalbaf lhe pergunta se ele já havia chorado muitas vezes pelo cinema, ao que segue sua resposta afirmativa. Nesta passagem, a atuação parece não mais se construir sobre uma simples e fria habilidade técnica de seus atores, pois é da afetividade daquele ator com o cinema que deriva sua capacidade de chorar, constituindo um fazer cinematográfico atravessado, de uma ponta a outra, pelos afetos de seus atores e realizadores. O cinema, assim, encontra-se atravessado entre a técnica e os afetos, necessariamente implicado por uma realidade que não se encerra nos limites do próprio filme. Ao tomar como ponto central os afetos e o desejo daquelas pessoas, a homenagem ao cinema é uma homenagem aos afetos que ele nos proporciona no seu contato com o mundo.

Todo este movimento, que desde o início do filme parecia se desenhar, com as câmeras tomadas pela multidão, é retomado no último plano, no qual uma moça segura a claquete com a palavra “continua”. A continuidade do filme não pode mais se realizar no interior da realidade fílmica, pois ela, logo em seguida, tem seu fim ordenado pelo diretor.

CORTE. Findo o filme, é no mundo da vida que o seu movimento pode atingir a completude, ou ao menos almejá-la, na efetiva interpenetração entre estes dois domínios. No espaço pós-fílmico, é a experiência transformadora do cinema que, na vida daquelas pessoas e dos próprios espectadores, perdura.


Referências bibliográficas
AUMONT, Jacques. A parte do dispositivo. In: ____. A imagem. 3a edição. Campinas: Papirus, 1993. p. 135-192.
BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1983. p. 383-399.
DELEUZE, Gilles. As potências do falso. In: ____. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles. O que é um dispositivo?. Trad. Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em, acesso em 27 out 2007.
EGAN, Eric. The films of Makhmalbaf: Cinema, Politics and Culture in Iran. Washington DC: Mage Publishers, 2005.
MELEIRO, Alessandra. O novo cinema iraniano: arte e intervenção social. São Paulo: Escrituras, 2006.
MIGLIORIN, Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. Digitagrama - Revista Acadêmica de Cinema. 1º sem, 2005. Disponível em , acesso em 25 out. 2007.
MONASSA, Tatiana. O 'real' em Close up e Salve o cinema. Cinestesia: revista eletrônica de cinema. vol. 2, fev. - mar 2004. Disponível em , acesso em 27 out. 2007.
XAVIER, Ismail. As aventuras do dispositivo (1978-2004). In: ____. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 175-207.

Notas
[1] Jean-Louis Baudry, um dos primeiros a se apropriar da noção, valia-se dela para compreender a experiência do espectador na sala de projeção por um viés de dominação social e de formação ideológica. Assim, ele fazia duras críticas ao discurso transparente do cinema, que ao ocultar no filme as contradições do aparato técnico envolvido, não assumiria a vinculação necessária entre tal aparato e uma visão de mundo burguesa, fundamentada na dualidade sujeito / objeto. BAUDRY, 1983; XAVIER, 2005, p. 175.
[2] MIGLIORIN, 2005.
[3] DELEUZE, 2007.
[4] Salve o cinema é o último filme da trilogia. Os outros dois filmes, Era uma vez no cinema e O ator, tratam da chegada do cinema no Irã e da frustração de um ator que, por sua condição financeira precária, é obrigado a trabalhar em produções comerciais que não o interessam. Sobre o conjunto da obra de Makhmalbaf ver EGAN, 2005.
[5] MIGLIORIN, 2005.
[6] Esta é uma das conseqüências da filosofia do dispositivo, tal como apontadas por Deleuze, pensando na questão de como surgem novas coisas no mundo; de como uma situação permite ultrapassar o simples reconhecimento das enunciações para tomá-las no interior de um novo regime. DELEUZE, 1990.
[7] DELEUZE, 2007.
[8] Deleuze aponta esta “recusa dos universais” como uma primeira conseqüência a uma filosofia dos dispositivos, relativizando, assim, estes processos totalizantes pela sua circunscrição processual a um ou outro dispositivo. DELEUZE, 2007.
[9] MIGLIORIN, 2005.
[10] MIGLIORIN, 2005.

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::Ensaio 02
A saudação a quem vai longe, mas no entanto, se avizinha
Por Affonso Uchoa, Luiz gabriel Lopes, Maurício Rezende, Marianna Valente, Michel Mingote

1. entre o resgate e a homenagem
A tradução do título Salam Cinema (1995), filme de Moshen Makhmalbaf, para o português, a princípio, pode nos dar pistas falsas: Salve o cinema. Mas pode também abrir a possibilidade de interpretações lúdicas, a criar outros significados: salve como saudação exclamativa, mas também um resgate, uma salvação. No título original do filme lemos salam: um cumprimento, uma saudação.

Mesmo que saibamos que o salam do titulo original significa salve no sentido de um cumprimento, uma saudacão, talvez não seja de todo ingênuo, pensar a partir do salve da tradução, o filme como empreendedor de um certo movimento de resgate, de retomada de algo que se perdeu. No caso, a vida e a individualidade dos sujeitos filmados. O cinema realizado sob a égide do espetáculo se esforça por eliminar toda a imprevisibilidade. E a imprevisibilidade, a sucessão infindável de acasos, é a marca maior da realidade. O real é imprevisível. Ao eliminar a possibilidade de acaso, o cinema sob a égide do espetáculo elimina a vida de sua tela. Ao adotar a máscara, o rosto conformado, a expressão estanque e conformada, o cinema de espetáculo anula o rosto, o signo da individualidade.

O cinema nasceu documentário: Nasceu sob a égide da captação e do registro de algo dado e percebido como verdadeiro, não encenado. A invenção de Lumière veio na mesma esteira das descobertas e pesquisas de Edward Muybridge: descobrir formas de captação e estudo do movimento. Para Lumière o cinema era um instrumento de utilização científica (a falta de tino comercial está teternizada na frase – segundo a lenda dita a Meliés – de que o cinema era uma invenção sem futuro). E em qualquer processo de análise e estudo científico, a consideração do que se observa como realidade é indispensável. Lembremos que estamos antes do século XX e a quebra do estatuto ontológico da realidade na ciência empreendida por Bohr e Heisenberg. E mesmo em momento anterior a Einstein, que, mesmo sendo tomado – muitas vezes erradamente – como uma ponta-de-lança do relativismo, era um realista em termos de concepção da ciência.

Lumière captava a realidade. Não falseava. Não iludia. Porque seu aparelho – a máquina cinematográfica – se prestava justamente a isso: fornecer dados do movimento para estudo científico. Portanto, o que vemos na imagem são corpos que realmente existiam, folhas de árvore que não foram posicionadas por ninguém, nasceram ali por graça de Deus ou gênese biológica, ao gosto do freguês fica a explicação. Claro que a filosofia contemporânea nos deu mais dados para evitar que a nossa afirmação da realidade dos corpos filmados e das folhas (bem como de qualquer outra coisa) não seja somente uma inocência. Wittgenstein explica isso muito bem quando fala dos quadros de referências determinando (e sendo modificados) pelos jogos de linguagem. A linguagem é móvel, em contínua metamorfose. Os signos mudam e os significados que dão sustento e são o fundo desses signos também mudam. Por isso, os significados das coisas só podem ser demarcados dado o estado atual do quadro de referências (surge daí a célebre polêmica wittgensteiniana ao responder jocosamente à assertiva de Russel: “se você estiver certo, então a filosofia passa a ser divertimento de chá das 5 para senhoras entediadas”, ao que Wittgenstein respondeu: “qual o problema?”. Para wittgenstein, a filosofia deveria assumir papel descritivo, não explicativo. Num clara quebra do papel de fundador de conhecimento ontológico na filosofia.) tal movimento está concretizado num aforismo do seu livro Da certeza: “eu sei pode indicar que estou certo a respeito de algumas coisas, mas não pode de maneira alguma significar eu não posso estar errado” . A certeza, a verdade pode sim ser afirmada categoricamente, mas somente dentro de um dado quadro de referências, em um dado momento do quadro de referências. Então dentro do meu quadro de referências, atual, ocidental, etc. eu afirmo que o que eu vejo nas imagens de lumière é verdadeiro e existe. Daí serem os primeiros filmes de Lumière, os primeiros filmes do cinema documental, nascidos sob a égide da captação de algo verdadeiro e real.

Até mesmo pelo caráter indicial obtido em função do aparato técnico: a imagem gerada é fruto da impressão física na película, de raios luminosos refletidos pelos objetos filmados. E além da marca de real, podemos pensar o cinema como nascido sob a marca do cotidiano. Jean-Louis Comolli, na sua Carta de Marselha sobre a auto-mise en scène, fala do filme Déjeneur du bebé, dos irmãos Lumière. Nele, as imagens se restringem ao que o título indica: a refeição de um bebê. Comolli aponta para o pioneirismo do registro de um sujeito no filme. Há uma pessoa filmada. E a esse dado fundamental, o autor relaciona todo um processo que se dá desde o nascimento do cinema: uma individualização do sujeito.

Verifica-se que ocorre desde o nascimento do ato cinematográfico um duplo processo de individualização, e se é que se pode dizer, de subjetivação do sujeito filmado, de modo que aquele que é filmado se torna personagem do filme e, através dessa parte dele mesmo que posa e se posiciona, ele se presta ou se dá ao olhar do outro. (COMOLLI, 2001:109)

O sujeito, assim entendido, torna-se então personagem do filme, é por ele abarcado. Dá-se ao olhar do outro, realiza seus gestos ante a esse olhar outro, materializado na lente da câmera. O sujeito tem consciência de que ser filmado significa se expor; sua performance diante da câmera é estratégica. Auto-mise en scène.

E talvez possamos dizer que, passado um tempo, o cinema se esqueceu da vida. Esqueceu-se dos homens e de seus rostos. Voltou-se para o império das máscaras, dos rostos moldáveis, que abarcavam atores e espectadores dispostos a incorporá-las nas suas vidas. E no caso dos espectadores, em grande parte das vidas: é sabido o quanto o cinema penetrou no inconsciente humano de todo o século XX, passando a ser uma base forte das narrativas do real, da vida e dos sonhos. Afinal, foram muitos os que quiseram levar as máscaras de Humphrey Bogart para casa, incorporar a figura do detetive, ou a do herói...

E é justamente nesse sentido que talvez possamos entender o que Makhmalbaf empreende em Salve o cinema realmente como algo da ordem de um resgate, de uma volta a essa individualização. a de Lumière. Lendo assim, novamente, a tradução do título como algo ambíguo, o salve significando tanto uma louvação quanto um grito de salvamento, de retorno ao movimento que o cinema abandonou: a captação da vida e da realidade.


2. Filme e personagens
O filme tem origem a partir de um anúncio de jornal, em que Makhmalbaf divulga o recrutamento de pessoas para a produção de um filme. Parece não haver muitas especificidades nas exigências do anúncio. Não temos acesso a ele no filme, mas parece genérico a ponto de acolher crianças, mulheres, homens, adolescentes, etc. Os interessados – muitos – se aglomeram numa praça e, liderados por um Makhmalbaf de megafone, procedem à disputa pelas fichas que garantem a participação no teste. A confusão é tremenda; quando chega ao ápice, o corte nos leva a um estúdio onde Makhmalbaf está sentado atrás de um balcão e observa os aspirantes a ator.

É importante notar atentamente esse primeiro movimento simbólico do filme que demarca uma individualização: no princípio, é só a massa. Planos gerais, travellings. A multidão é grande. Para dar conta dela, são necessários ângulos abertos, que uniformizam, não estabelecem a diferença, diluem as individualidades em prol do conjunto arrebatador que as suas presenças somadas concretizam: planos gerais. Os travellings passeiam rapidamente pela multidão amorfa. Como se pela velocidade se tentasse dar cabo da massa que se estende pelo espaço. A velocidade, porém, não permite atenção aos rostos. Eles passam, não se fixam. São, assim também, no tempo, amorfos e indistintos. É quando há o corte, e passamos ao estúdio e observamos um personagem em plano médio, o plano que enquadra seu corpo inteiro. Estamos agora diante de uma pessoa. Ela. Única. Não mais diante de uma massa.

Destaquemos desse movimento a primeira característica fundamental do filme na lida com seus personagens: o que vemos organizado na linguagem do filme, por meio da montagem – os planos vão do aberto, do fora, do indistinto, ao fechado, ao selecionado, ao individual – vemos também organizado pelo dispositivo do filme – a retirada desses homens ordinários da massa amorfa inicialmente demarcada e uma busca pelas suas individualidades, suas vozes, seus rostos, sua fugidia singularidade. O filme, ao mesmo tempo que força materialmente esse movimento, o escreve, o realiza em linguagem, na imagem que se vê. Outra força que retira esses homens ordinários da multidão é o próprio cinema. O cinema eterniza, dignifica, enobrece. A massa é só anonimato. A promessa da marcação de uma eternidade, o rompimento com a vala comum e reles estimula os sujeitos a investirem seus esforços na empreitada de entrar para o cinema. O cinema instaura uma dignidade – marca uma existência. E o cinema enquanto meio de ascensão social, a busca pela notoriedade, pela fama e sucesso que advém da posição de se estar no cinema. A possibilidade de estar no cinema move os sujeitos a forçar a entrada no cinema (nesse sentido o arrombamento da porta torna-se mais que contingência de situação e alcança a condição de signo). O cinema, concebido no imaginário compartilhado como lugar de notoriedade e fama, dignidade e existência, move os personagens ao seu encontro. Há que se ver como ele os recebe.

Cada filme, concebido como uma construção, e não como um espelho do real, uma construção de real por meio dos corpos que atuam para o filme, por causa do filme e no filme, transforma esses corpos em personagens.

O filme documentário, como nos diz Joana Rennó, é resultado de um recorte relativamente subjetivo da realidade, condicionado pela relação firmada entre três pólos específicos: o cineasta, o objeto filmado e o aparato cinematográfico. Segundo a autora, no processo de construção dos personagens, desejos, devires e potencialidades são colocados em relação.

A marca fundamental do documentário, contudo, é que ele dá a ver e ouvir homens ordinários em lugar de atores profissionais, como escreve Jean-Louis Comolli[1]. Há, aparentemente, um paradoxo. Os homens ordinários assumiriam o papel e a condição de incorporarem personagens, reduto e Métier próprio dos atores, que são os que têm a capacidade e a profissão de se metamorfosearem em outros. Esse paradoxo, no entanto, principia a desmoronar com a concepção do documentário como um constructo de real. Perde-se a obrigatoriedade de mostra a um real ontológico – e como um filme surgido da relação acima descrita: o que olha, o que é visto e a câmera.

A habilidade de Makhmalbaf – e de seu filme – consiste em deixar escapar algo de próprio das pessoas que participam de seu filme por uma via paradoxal: pela solicitação de uma atuação, pelo incitamento dos homens ordinários a atuarem, a realizarem a operação própria dos atores profissionais. O que se revela nessa operação é a incapacidade da realização de tal ato. Eles não são atores, eles não conseguem desempenhar a função para a qual são solicitados – interpretar, no caso, chorar, ou rir, ou realizar, ali, nas mais precárias condições, um filme de ação, ou mesmo um melodrama, como Makhmalbaf pede ao personagem que gosta de melodramas. Eles, portanto, não conseguem fingir, sair de si para incorporar outros. Contudo, o que o filme deixa a ver, provoca e registra é que sim, eles conseguem. Conseguem fingir, conseguem sair de si: eles conseguem atuar, eles atuam. Mas fazendo o papel de si mesmos. Assim, o filme ao partir de um pressuposto ficcional – interprete, finja ser o que você não é, saia de si, aja como um ator – acaba encontrando o documentário, ao forçar, solicitar e acolher esses homens ordinários em seu falseamento de si mesmos; ao deixar escapar, na fissura aberta pela falha ao atuar, fagulhas das vidas desses homens ordinários no instante do encontro entre as suas vidas e o cinema, seu aparato. Partindo da vida para se chegar a uma mentira, chega-se a uma falha, a uma inadequação: os homens ordinários não interpretam bem. Makhmalbaf é categórico: “o melhor papel que você desempenha é esse seu agora: o de você mesmo”. O filme documentário suscita essa auto mise-en-scène do sujeito. Parte da mentira para chegar à vida.

Salve o Cinema
exibe o aparato cinematográfico. Logo no início, a própria câmera é mostrada. Durante a seleção para atores, o ajuste de luz, a troca de rolos das câmeras, a estrutura cinematográfica, tudo se dá a ver. O dispositivo que o filme organiza tem como veio principal capturar esses homens ordinários e fazê-los personagens de si mesmos. Devir personagem. O personagem criado pelo e no seio do próprio filme, pelas condições de possibilidade de um filme. A câmera, a máquina. Nesse sentido são eloqüentes os diversos planos da manutenção do maquinário do set de filmagem: o filme se mostra como filme o tempo todo. O espectador não é colocado no seu lugar habitual do visor (observador) privilegiado, o onisciente, que tudo vê, escondido, e confortável no seu lugar. O espectador é defrontado com a perspectiva. Aquilo que vê é marcado como um ponto de vista: a câmera que olha, assume o olhar, não se esconde dando só a ver a visão. Dupla operação: a câmera, o quadro, o olhar condicionado pela máquina, ao mesmo tempo em que revela, que dá a ver o que o quadro realiza; também esconde, deixa algo para fora. Fora de campo, fora de quadro. Mas fora também no sentido de algo mais profundo que uma condição geométrica da imagem: fora no sentido do inalcançado. Ao mesmo tempo em que o espectador vê o que produz seu olhar, ele vê que seu olhar não olha certas coisas. O filme então é tornado uma entidade reflexiva do olhar. O ponto de vista, o quadro, o filme instauram a presença e inauguram uma ausência. Uma presença de mundo, uma ausência do mundo.

O homem ordinário, ali, utiliza-se dos meios cinematográficos, mesmo dos mecanismos da ficção e do espetáculo, mas o que rege a sua performance não é o convencimento de uma representação específica, não é representar James Dean porque ele sempre será ele mesmo, real naquela condição, representando James Dean. E o que mais interessa marcar aqui é como o filme investe nessa crença dos personagens, como o filme atualiza e realiza a performance cinematográfica dos personagens, como transforma os fingimentos dos personagens em adoráveis mentiras honestas. Fica patente na parte em que o personagem que se diz parecer com Paul Newman quando jovem, ao ser convocado a atuar realiza ali mesmo um faroeste, afinal “estrangeiros fazem faroeste”. O filme, então, pela montagem, intercala as imagens dele, atirando com as mãos vazias para o alto, em pose de cowboy corajoso e acuado por todos os lados, com imagens de outros personagens que ao atuarem, ocuparam o lugar do morto nos filmes de ação, os que sofrem os tiros e caem com os corpos vazios. O filme realiza a sua performance. Sua montagem faz com que, de fato, os tiros com as mãos vazias que o personagem desfere, atinjam e derrubem outras pessoas, tornadas, pela montagem, oponentes. O filme faz também com que aquele que caiu, atuando num filme de ação ali mesmo no set, realmente caia, tombe alvejado pelos tiros de um sanguinário cowboy. Assim também é com aquele personagem que imita uma bateria eletrônica com as mãos: ele ali, faz uma trilha sonora. Com a boca, as mãos vazias tocando pratos e caixas imaginários. Contudo, pela montagem, só vamos saber que o som que ouvimos é produzido por um dos candidatos, quando ele corta e mostra sua imagem de mãos vazias e beat box. Antes, há imagens de corpos caindo em slow motion, ápice dramático do filme de ação. E a trilha marcando a energia das imagens, uma bateria marcando o perigo e a emoção dos tiros. A trilha que o personagem faz, imaginando fazer uma trilha, é tornada realmente trilha pelo filme. Aí já não estamos mais no terreno da simulação. Tudo está dentro, dentro do filme.

O filme captura os sujeitos na sua singularidade: sua presença, mas não sua substância. Não sucessão de particularidades, vícios e caráter. Nem pertencimento a uma classe mais abrangente. Não tipificação, metonímia de um todo o qual justificaria, substituiria e comporia. Sim, uma exposição. Sim a sua exemplaridade.

O filme percorre essas singularidades dos personagens: instante no qual ele ainda não se configurou num outro absoluto, sem possibilidades de identificação, marcado, permeado de características e qualidades, mas também não aderiu à massa informe. O momento em que o homem é pura potência. Potencia de concretização (e encarceramento em particularidades), a qual, no momento da concretização, por ser realizada, já escapa.


3. cinema, máquina de sonhos
O cenário nos remete a uma seleção de elenco. Também dá pistas do estágio mercadológico elevado do cinema: tudo se assemelha a um esquema industrial. Há o chefe. Hierarquizado, central: Makhmalbaf. Há os trabalhadores, dispersos espacialmente ao redor. Há o manuseio das máquinas: a abertura da bandeja do spot de luz, a troca do filme, o abrir da íris da lente, etc. O cenário é de pressão, profissionalismo, seriedade. Tal qual o cinema é hoje, afinal. E Makhmalbaf recebe aqueles que pretendem atuar no filme. E pede deles algo simples, óbvio, porém de extrema complexidade: que atuem. Vários ali são pessoas ordinárias, sem experiência na área, não-atores que leram o anúncio no jornal e ficaram interessados. Fica patente a inadequação que essas pessoas têm frente a esse tipo de atuação que o cinema solicita. Assim, nessa inadequação, acabam desempenhando o papel que Makhmalbaf deseja que desempenhem, o papel para o qual o filme se dirige para capturar, o papel deles mesmos.

O grande paradoxo que atravessa a construção do filme parece residir exatamente nessa equação: as pessoas não sabem que o casting já é o próprio filme. Elas acreditam que o que ali vivenciam é somente uma seleção, um estágio preparatório, eliminatório também. E o mecanismo criado pelo diretor em nada parece dar a ver sua real intenção.

É curioso observar, inclusive, a ampla e humilhante aceitação por grande parte dos pretendentes a essa estranha prática comum aos domínios do espetáculo, que trata as atividades artísticas com vocabulário e gestos do mundo financeiro, como na variada gama de shows de calouros que a contemporaneidade engendrou na televisão. O casting, a seleção, a necessária separação dos melhores, nas quais os piores, os não adequados são sumariamente demitidos, dispensados. Makhmalmaf faz o papel do tirano, insensível e implacável. É o balizador sério do que é cabível ou não no cinema. Traz para si uma autoridade quase inquestionável. Pega pelo pescoço a questão da atuação, a forma pela qual um corpo se faz presente em um filme. Quer que as pessoas que tem diante de si atuem. Mas o que Makhmalmaf realiza, de fato, é o sutilíssimo gesto de botar em movimento de choque e questionamento todo um imaginário do que é o cinema, de como o cinema deve abarcar o outro, o corpo, da relação entre vida e cinema. O que Makhmalbaf faz é louvar a vida comum e reles desses homens que tentam ascender à escala do extraordinário e que não conseguem. Não conseguem porque o cinema não os quer. Porque o cinema sob a égide do espetáculo só concebe os homens ordinários como consumidores. Makhmalbaf vai ao encontro deles, promove o encontro deles com o cinema. É a eles que Makhmalbaf concede a categoria de protagonistas em seu filme. Makhmalbaf se arma de toda uma atuação (na sua figura) e dispositivo (na forma do casting) que remete ao espetáculo e sua transformação de arte em ação financeira para o desestabilizar. Na falha desse dispositivo, no ato de ele estar ali armado para selecionar os melhores, agir conforme manda o espetáculo, mas não fazendo isso, não lidando com as pessoas com essa intenção de contratá-las ou demiti-las, surge a possibilidade de um novo cinema: um cinema voltado pra vida e pros homens que perdem, os comuns.

No imaginário standard, o cinema é indústria, uma fábrica de sonhos (o vocabulário industrial é velho e por demais eloqüente). É preciso suar a camisa, no cinema não há espaço para todos. Há que se selecionar os que são hábeis para tanto. Por ser fábrica, o filme é produto: tem trajetória. Narrativa linear: da concepção à finalização. Planejamento para eliminação de riscos. Um imaginário difundido por todo o ocidente, por todo o século XX, em que o corpo filmado não é o corpo qualquer. As pessoas têm de se portar de um tal modo para serem aceitas. Funda-se toda uma prototipia gestual que o cinema inaugura e espalha pela vida: o jeito de fumar cigarros dos impassíveis detetives, as cruzadas de pernas das mulheres fatais, o ar tímido de virgem encantadora de Audrey Hepburn, o andar indolente e os olhos semicerrados de Marlon Brando, os cílios, corpetes e batons de Marilyn Monroe. Por isso é sensacional observar os personagens ordinários de Salve o cinema, quando confrontados com a câmera. Seu movimento de atuação que o imaginário do cinema configurou. Num movimento ambíguo que dá a ver todo esse imaginário, materializado nas posturas e trejeitos dos corpos filmados.

Os rapazes cantores se contorcem como George Michael e outros cantores românticos, mas há também o rapaz rock´n roll, com sua air guitar e seu jeito que invariavelmente lembra Elvis Presley. E mais uma vez, a contradição que funda o filme: tudo é organizado de modo a capturar esse processo de embate. De um lado, os corpos das pessoas, com suas histórias, seus gestos próprios. E do outro, um imaginário de cinema configurado e socialmente compartilhado, que demanda certas posturas que não são necessariamente (e na maioria das vezes, não são) condizentes com suas vidas. Salve o cinema se coloca justamente no esforço de captação desse entre, essa fissura, esse intervalo. O corpo que se metamorfoseia entre o despreparo perplexo e a postura endurecida de uma atuação em corruptela dos moldes hollywoodianos. O embate entre o que as pessoas são e o que o cinema as deixa ser, ou solicita que sejam.

E o próprio Makhmalbaf assume um papel. Incorpora um imaginário. É o controlador, o diretor rígido. Realiza seus gestos como o do emanar das ordens. E é particularmente interessante ver suas reações faciais quando do seu encontro com as duas garotas que compõem a segunda metade do filme. No momento que a moça de óculos, a mais tagarela, começa a responder, e Makhmalbaf passa as mãos no rosto com ar de grande impaciência e fastio. Ou quando ela lhe pergunta se ele, por sua vez, gostaria de ser uma boa pessoa ou um bom diretor e ele simplesmente ignora a pergunta da moça. Makhmalbaf ocupa o lugar do ocupado, do sem tempo a perder, quase do general. É forçoso notar seus gestuais organizativos do espaço. Como ele roda as mãos mandando as pessoas ocuparem o espaço sob a luz, como ele abre os braços chamando-os da escada e como ele brinca com os rapazes do filme de ação atirando-lhes uma granada. Ele é o que conhece o espaço, indica posições, comanda com as mãos o deslocamento. Ele é também o patrão, o que zela por uma função. O diretor de cinema como chefe empresarial. Em suma, esse é o papel que Makhmalbaf desempenha.


4. Chore e estará no cinema
O filme estabelece um dispositivo, uma estrutura de abarcamento de ações e repostas. Lança perguntas, joga com a situações, e é assim que se constitui. Esse dispositivo é responsável por capturar fragmentos das vidas dessas pessoas, diante de uma estrutura física e imaginária do cinema que aparece amplamente compartilhada, a do cinema “profissional”, grandioso, rigoroso. O dispositivo solicita posturas e recebe o que daí deriva. Ele pede que as pessoas atuem, que desempenhem um papel, que ajam de maneira a fazer algo que não seja elas mesmas. Mas, na solicitação do papel a ser desempenhado já há uma série de ambigüidades que apontam para o jogo da atuação e da presença dos corpos e dos indivíduos que o filme apresenta. Aos aspirantes a ator é pedido simplesmente que chorem ou riam. Afinal, há que se saber fazer isso, quando se é verdadeiramente um ator: sair de si, incorporar uma ação outra. Mas não há necessidade de ir tão longe para se fazer isso. É uma experiência de absoluto compartilhamento. O que está em jogo é que as pessoas, para saírem de si, teriam de buscar algo dentro de si mesmas. Chorar não é um ato que exija uma transformação completa. Tomar um outro como base, um referencial externo. Todos choram. Para desempenhar a ação de chorar, bastaria então voltar-se para si mesmo, para seus gestos, para a forma como você mesmo chora. E assim, chorando como você chora, se estaria então chorando como é pedido. Makhmalbaf pede que se atue, saia de si, fazendo algo que todos sabem já fazer e que para fazer, seria necessário somente fazer como já se faz. O jogo que é instaurado é que esse choro, o comum, o que já se chora fora do filme, as pessoas não querem desempenhar, pelo fato de que há um choro já configurado pelo imaginário do cinema. E as pessoas ao atuarem o choro resolvem sair de si, desempenhar a ação de chorar remetendo a um referencial externo. Enquanto bastava chorarem como elas mesmas choram.

Para realizar a tarefa não é preciso se espelhar em coisa outra. Apenas fazer como se faz. Mas é claro que isso não é possível: há a luz, há a pressão, há a câmera. Há uma solicitação de postura que não é a da postura mesma, devido a todo um circuito constrangedor que se coloca ao redor. Há a solicitação do desempenho de uma atividade que, embora comum, não é própria daquele momento. A pessoa tem que sacrificar, se constranger para entrar no jogo. Solicita-se que ela incorpore um imaginário, uma prototipia comportamental, que é justamente aquela de uma imagem do grande cinema, do mundo das celebridades, da indústria. E invariavelmente, existe aí a possibilidade da falha, mas nesse caso quem determina o que é falha é Makhmalbaf. Ele instiga os personagens ao jogo de aproximação/distância constante entre os corpos e o imaginário padrão do cinema, a atuação, a postura a ser encarnada. Ele sempre diz que está quase. Que basta fazer isso. Mas quando isso é feito, não, não era isso. Está-se sempre longe, e sempre extremamente perto do cinema, de estar no cinema, de pertencer ao cinema. Em outras palavras: o cinema está sempre perto e sempre longe de abarcar a vida dessas pessoas.

“Chore e estará no cinema”. “Não, você não chorou como no cinema”, ouvimos Makhmalbaf dizer: duplo afastamento – o corpo ordinário incapaz de performatizar no toque do cinema, o cinema distante de capturar esse corpo senão pela prototipia, pela figura, pelo moto contínuo do imaginário. Nesse sentido é importante lembrar a parte em que Zinal, o seu assistente e ator profissional – atuou em O ciclista, filme do mesmo Makhmalbaf – chora. Zinal é convocado para servir de exemplo do ator profissional: aquele que é capaz de atuar sob quaisquer condições. No caso, chorar. É preciso chorar, mas não um choro qualquer. É preciso atuar, para se mostrar capaz de pertencer ao cinema, de estar no cinema. Zinal chora. Zinal é profissional, ele sabe atuar, ele chora quando lhe solicitam. Contudo, Makhmalbaf é implacável em seu julgamento: “você também fracassou, Zinal”.

A cena nos conduz a uma crescente indistinção entre atuação e verdade. Zinal começa sua concentração para o choro e Makhmalbaf o instiga com lembranças e perguntas de sua trajetória, de quando começou, das dificuldades para interpretar o personagem em O ciclista, e assim, o choro de Zinal intensifica-se. O que gera o choro? O profissionalismo, ou as lembranças, o toque da vida? Não é possível saber. Zinal chora verdadeiramente, na sua atuação. Há verdade no choro de Zinal, a ponto de ele despertar a ternura e compaixão de um dos personagens que o abraça e beija, como se protege alguém atravessado e fraquejado, que chora. Então, Makhmalbaf julga: você também fracassou, Zinal. O fracasso de Zinal é o fracasso do cinema. O cinema do imaginário standard, o imaginário da fábrica de sonhos e ilusão. Zinal poluiu o cinema, concebido nesses termos, com verdade e isso é intolerável. O cinema sob a força do espetáculo, sob a guia da indústria, arma seu aparato para reduzir os riscos na representação do real. Não há espaço para imprevistos. Esse cinema não permite que a verdade da vida cotidiana, permeada de acasos e imprevisibilidades seja presente na imagem. Há que se organizar seus signos também com a menos margem possível de ambigüidade: o sentido tem de ser claro para que se atinja mais facilmente e sem margem de erro seu público. Para tanto, há toda a prototipia gestual, todo o dicionário de gestos cinematográficos: signos já consolidados, configurados e com muito menor ambigüidade na recepção. Por isso, quando Zinal chora, ao confundir o estatuto de representação de seu choro e instaurar a dúvida sobre a sua representação, tornada, de repente, possivelmente verdadeira, traz um gestual pra fora do protótipo, instaura uma ação duvidosa, ambígua, sem sentido claro. Força o espectador a sair da confortável posição de deus brincador com vidas alheias, crendo na representação, mas sabendo que é tudo mentira; e ocupar o lugar do inconveniente, alguém que observa um ato obsceno: partilha da verdade mais íntima de alguém sem ser convidado. Nesse sentido, tudo muda.

Zinal viveu ao invés de atuar e isso não é coisa que um ator faça. Assim, Zinal fracassa, mas é também o cinema que fracassa. Esse cinema padronizado, incapaz de conter a verdade, de atingir uma vida e seu choque incomensurável. Há também aqueles que têm que fazer como os personagens de um filme de ação, os que têm de cantar – afinal, Hollywood nos ensinou desde Fred Astaire e Judy Garland que atores têm de saber dançar, cantar, etc... E Makhmalbaf, irônica e inteligentemente, faz de seu filme uma falha também. Só há falhas, imperfeições. Seu filme é um rascunho, um esboço de um filme. Seu filme é a preparação para um filme. Ao colocar pessoas comuns para desempenhar situações do imaginário padrão do cinema, captura a falha dessa realização. Ao colocar pessoas ordinárias desempenhando essas situações, promove a emergência de algo diverso, que não é nem o imaginário atualizado nem a vida delas, mas sim um intervalo, um entre.

O filme filma o encontro dessas pessoas com a câmera e com o aparato do cinema. Filma o encontro do corpo delas com o imaginário do que é o cinema, tal como constituído anos a fio. E filma o desencaixe dessas peças. Mais uma vez, porém, esse desencaixe é definido nos termos desse imaginário padrão. Pois essa falha é tudo, e é dela que o filme se alimenta, através dela que se constrói. Salve o cinema se utiliza do risco, da imperfeição, do inacabamento. Seu procedimento é o de potencializar as próprias fraquezas inerentes à forma do documentário, apropriar-se delas na constituição de seu dispositivo. Remete-se, assim, a uma dimensão fundadora da própria idéia de documentário. É como assinala Comolli: “Desta dificuldade que lhe é imposta de alguma maneira de fora, o cinema documentário tira todas as suas riquezas. (...) A falta de maestria do documentário aparece como condição de invenção. Dela, irradia a potência desse real mundo.” (COMOLLI, 2001)

Makhmalbaf, ao jogar sempre a atuação no âmbito do “quase”, marca o cinema também como “quase”. Marca a vida também no cinema como quase. E esse quase é tudo. Por isso, o resgate da vida no cinema. Por isso o resgate: Salve o cinema. O mote do centenário do cinema, como tempo de homenagens e retrospectivas, não é vazio. Nesse tempo de saudação, faz-se necessário olhar pra trás, voltar ao que constituía a base e de onde tudo emergiu. O quase como a esfera do fracasso. Seu filme é um fracasso um filme que não é senão o esboço de um filme. Mas esse esboço é tudo. E seus personagens. Após falar que Zinal fracassa, Makhmalbaf diz: todos fracassaram. Sim, todos fracassaram, todos não conseguem se ajustar às normas rígidas impostas pelo cinema, pelo imaginário do cinema sob a marca da indústria, a que seleciona os melhores para a produção do melhor espetáculo. O cinema fracassa também com todos. Vira as costas para os rostos em busca de máscaras bem-moldáveis.

Makhmalbaf faz sua escolha ao escolher não só fazer de um processo preparatório de filme, o seu filme, mas também ao escolher pessoas que são os fracassados, os que perdem, os que não se encaixam: os homens ordinários. Makhmalbaf faz do seu filme uma escrita e uma atualização do fracasso, pois reconhece nele a maior das potências. A potência da vida. Uma vida fora das estereotipias com que o cinema a representa. O filme consegue fazer dessa suposta seleção de elenco o espaço para a marca da individualidade das pessoas que se propõem a participar dele. A individualidade, o caráter dessas pessoas que escapa à massificação, à padronização, ao achatamento das suas individualidades sob a marca de uma massa amorfa, surgido do desajuste da vida delas diante de um imaginário padronizado.

A falha em desempenhar bem permite escapar mais elementos da individualidade dessas pessoas. A individualidade que surge quando confrontada com uma câmera, o olhar do outro, o olhar do cinema, o olhar do espectador de cinema pré-figurado. Há que desempenhar bem no cinema. Por isso a reação dúbia quando do momento da revelação do dispositivo por Makhmalbaf: o que você acabou de fazer é a sua participação no filme. Você se sente feliz? Sim, as bocas dizem, mas talvez os corpos não o demonstrem. Situação dúbia que implica em sim, a felicidade de participar do cinema, mas talvez, como assim minha participação no cinema é só comigo, assim, eu por mim mesmo? A vida parece enfeiar de repente. Torna-se indigna do cinema. Mas é exatamente o ponto que Makhmalbaf parecia querer atingir: essa estranha equação que relaciona a vida e o cinema, os sujeitos reais e os personagens dentro do filme. Nesse âmbito, Comolli nos pergunta:

O que se passa com aqueles que filmamos, homens ou mulheres que tornam-se assim, personagens do filme? Eles nos fazem reter, antes de tudo, que existem fora do nosso projeto de filme (...). Filmar os homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, pelo indizível das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsões. (COMOLLI, 2001:105)

Por isso antes de exibir a placa onde se lê a inscrição “continua” – sim, essa é uma história que só continua – ele responde a questão que anteriormente propusera a seus personagens: no cinema há lugar para todos? Sim, o filme mostra, sim, o filme acredita.


Referências Bibliográficas
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Nota
[1] COMOLLI, Jean-Louis. Os homens ordinários, a ficção documentária. In: GUIMARÃES, César; OTTE, Georg; SEDLMAYER, Sabrina (orgs.). O comum e a experiência da linguagem. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.


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