domingo, 27 de janeiro de 2008

O cinema como uma aventura teórica

A disciplina Documentário e ficção no cinema moderno, ministrada no 2o. semestre de 2007, no curso de Comunicação Social da Fafich/UFMG, pelo professor César Guimarães, propôs uma interlocução entre o documentário e a ficção, buscando ultrapassar tanto um desenho fechado dos dois gêneros quanto a sua diluição em traços demasiadamente vagos, como acontece comumente hoje em dia.

Crônica de um verão (Rouch; Morin, 1960), Nossa Música (Godard, 2004), Close Up (Kiarostami, 1990) e Salve o cinema (Makhmalbaf, 1995) foram os filmes eleitos. Cada um deles, ganhou dois ensaios que abordam aspectos diversos, mas complementares da relação documentário/ficção. Da França, selecionamos um filme de Rouch (em parceira com Morin) e outro de Godard por acreditarmos que eles são os cineastas que mais questões lançaram ao cinema de sua época, dentre elas, os limites entre ficção e documentário, sendo o lugar de fala de Rouch o campo documental e de Godard, o campo ficcional.

Para completar a filmografia do curso, fomos ao Irã, cinematografia que, na atualidade, tem sido a que mais problematiza as fronteiras entre os gêneros, ao nos apresentar filmes de ficção com um forte caráter documental e filmes documentais com um forte caráter ficcional, de uma forma extremamente original.

Durante a disciplina, os alunos, divididos em grupos, elegeram uma questão sobre a relação documentário/ficção nos filmes selecionados a ser aprofundada, em um texto de caráter ensaístico. Os textos deste blog são o resultado dessa empreitada. Seguem abaixo os títulos dos ensaios. Para acessar os ensaios de um filme, basta clicar sobre o título do filme desejado:

Crônica de um verão
Ensaio 01 - Crônica de um verão - um olhar atento e despretensioso do seu tempo
Ensaio 02 - Diante do olho provocante

Nossa Música

Ensaio 01 - Campo. Contra-campo. Música.
Ensaio 02 - Notas sobre a escuridão

Close Up
Ensaio 01 - O documentário e a ficção - lado a lado
Ensaio 02 - Os falsários em Close Up

Salve o cinema
Ensaio 01 - Salve o cinema: O filme além do próprio filme
Ensaio 02 - A saudação a quem vai longe, mas no entanto, se avizinha

Agradecemos aos alunos que se entregaram a essa aventura e abraçaram o desafio de passar alguns meses conversando e escrevendo sobre um assunto com tão pouca bibliografia. Não menos louvável são a paciência e coragem desses alunos para refletir sobre filmes, que de forma maravilhosa e desconcertante, nos convidam a repensar algumas questões cruciais para o cinema contemporâneo.

Crônica de um verão - Rouch; Morin (1960)

::Ensaio 01
Crônica de um verão: um olhar atento e despretensioso do seu tempo

Por Maíra Vieira e Rafael José Azevedo


Crônica de um verão (França, 1960), filme realizado por Jean Rouch e Edgar Morin, foi idealizado, segundo este último, como “um experimento de interrogação cinematográfica” (Crônica de um verão). E pensar o filme dessa maneira permite enxergar um dupla interrogação a qual ele se propõe.

De um lado, Crônica questiona o próprio cinema sobre as possibilidades e as condições de realização de um documentário e, de outro, interroga o seu próprio tempo a partir dos diálogos e das conversas travadas entre aqueles que participam do filme.

Neste documentário, Jean Rouch e Edgar Morin colocam em prática – influenciados pelos mestres Flaherty e Vertov – uma experiência inédita de cinema-verdade. E, para isso se apropriam, de certo modo, de elementos estilísticos da crônica enquanto gênero literário. A crônica se constrói a partir de um aprofundamento do olhar direcionado a algo,

por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e essa humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição (CANDIDO, 1992: 13).

Seguindo uma dinâmica que dialoga com essas características da crônica, o filme se constrói, passo-a-passo, a partir dos momentos compartilhados entre aqueles que o experimentaram (enquanto participantes/personagens). Para Jean Rouch, “a única maneira de se fazer um filme é através do método de aproximações sucessivas” (apud QUEIROZ, 2004: 136). Em Crônica de um verão esse método é posto em prática.

Num primeiro momento, Angelo, por exemplo, é somente um dos operários que conversam sobre seu dia-a-dia e suas profissões. Ao longo do filme, a participação de Angelo aumenta e o olhar dirigido a ele se aprofunda. Em outro momento, Rouch e Morin proporcionam um encontro dele com Landry. Neste encontro, ele realiza um processo no qual Angelo tenta se diferenciar de seus companheiros de trabalho. Ele é um operário da Renault, porém critica os hábitos da grande maioria de seus colegas. Eles, segundo Angelo, para aparentar estar em uma situação social privilegiada ou mesmo para ter um carro, abrem mão de inúmeros hábitos, tais como almoçar no restaurante da fábrica. Ele diz não fazer isso. Afirma almoçar, e almoçar bem, naquele restaurante. Ele concorda com Landry quando este diz que não conseguiria ser um operário. Porém, na seqüência seguinte, Rouch o acompanha com a câmera em seu trajeto diário. Apesar de insatisfeito, ele não parece vislumbrar uma maneira de escapar dessa situação e aparentemente conforma-se dando continuidade à sua vida.

Em todo esse processo, Angelo se mostra como um sujeito singular e único e, não somente como um mais um exemplar da classe trabalhadora que vive na França no verão de 1960. Nesse exemplo, percebe-se como o filme aborda a realidade de maneira similar à da crônica.

Crônica de um verão, e, não Crônicas de um verão. Histórias e vivências mostradas que são acompanhadas pela singularidade da palavra. “Este filme, ao contrário do cinema habitual, nos introduz na vida”, ressalva Morin na seqüência final do filme. Observa-se, então, que o documentário, seguindo os moldes da crônica, dirige aos sujeitos um olhar que humaniza e individualiza a trajetória de cada um destes “homens e mulheres que deram momentos de sua existência a uma experiência de cinema-verdade” (Rouch, Crônica de um verão). Dessa forma, seria simplista acreditar que o filme busca, a partir dos depoimentos dos participantes/personagens, somente ilustrar os acontecimentos históricos que se desenrolaram no contexto socioeconômico, político e cultural francês daquela época.

Nos diálogos do filme, pode-se apreender algo daquele tempo, porém, Landry, por exemplo, é mais do que um dos milhares de habitantes que migraram da África para França devido à emancipação das colônias francesas naquele continente ao fim dos anos 50. Ele é, antes disso, um sujeito que vivenciou esse processo de migração de maneira singular. Através do documentário, ele entra em contato com diversas pessoas, tais como: Angelo, Marceline, Nadine, os filhos de Morin, e muitos outros. Durante esses encontros ele mostra aos outros algo de si e apreende destes algo novo. Landry é convocado a tomar o filme como uma experiência que modificará o seu olhar sobre o outro e sobre si mesmo. Ao passear por Saint-Tropez com Nadine, ele experimenta situações como um etnólogo e relata as impressões que tem do lugar comparando-as às idéia que ele já possuía de lá. Quando conversa com os filhos de Morin, ele pergunta como estes viviam. Eles respondem que só o que têm a obrigação de fazer é estudar. Landry diz a eles que uma criança precisa saber mais coisas contando que quando criança já sabia cozinhar. Dessas e outras situações propiciadas pelo documentário, ele, com certeza, não sai imune.Dessa forma, Crônica de um verão é uma crônica experimental que, prescindindo de uma tese, se entrega a uma experiência de cinema-verdade na qual não se tem controle total sobre o seu desenrolar. E, nesse processo, rompe com o modelo de verdade visto no cinema.

Gilles Deleuze fala dessa quebra com o modelo de verdade dando muitos exemplos de filmes do cinema ficcional, no entanto Crônicas se mune desse rompimento para sua própria construção. O que caracteriza tal quebra é a utilização de uma narração chamada de cristalina pelo autor a qual não aspira ser verdadeira, que faz as descrições dos fatos apontando para uma falta de discernimento entre o real e o imaginário. A potência do falso é aproveitada artisticamente criando um novo estatuto da narração que “deixa de ser verídica (...) para se fazer essencialmente falsificante (DELEUZE, 1990: 161).

“A narração verídica se desenvolve organicamente, segundo conexões legais no espaço e relações cronológicas no tempo” (DELEUZE, 1990: 163). Em contraposição, a narração segundo o modelo falsificante quebra o “sistema de julgamento” em um procedimento em que ela está sempre se modificando em lugares desconectados e momentos que não seguem a ordem cronológica. É um movimento que, simplificadamente, se faz da seguinte forma: a narrativa falsificante usa a potência do falso para se constituir afetando o sistema de julgamento que totalizaria a verdade aos olhos dos espectadores e dos próprios personagens. E
a potência do falso só existe sobre o aspecto de uma série de outras potências, que estão sempre se remetendo e penetrando umas às outras (...) o falsário será portanto inseparável de uma cadeia de falsários nas quais ele se metamorfoseia (...). E a narração não terá outro conteúdo senão a exposição desses falsários, seus deslizes de um a outro, as metamorfoses de uns nos outros (DELEUZE, 1990: 164).
Dessa forma, não faz sentido julgar se os personagens de Crônica estão sendo sinceros ou não (da mesma forma que eles mesmo fazem após a prévia na sala de cinema), mas buscar neles aspectos de suas vidas e as formas como a experimentam, como se exprimem e de que forma eles tomam o próprio fato de vivenciarem suas relações frente a câmera.

Os diretores têm consciência de que a o aparato cinematográfico vai modificar as relações das pessoas que estão na sua presença e usam isso em favor da construção do filme. Eles propunham que os personagens falassem à câmera de suas experiências captando fragmentos daquelas realidades e na conversa final eles nem sequer questionam em que medida os participantes estariam atuando. Morin, nessa conversa, até conclui que mesmo atuando na Place de la Concorde, Marceline estaria sendo sincera.

Cineastas como Rouch e Morin, postulavam a interferência da presença da câmera e do aparato fílmico nas pessoas mostradas como indissolúveis do ethos do documentário como realizavam, não intencionando a recepção objetiva de uma realidade pré-existente. Ao contrário, eles valorizavam a experiência cinematográfica como singular, criada no momento da filmagem. Tratava-se do chamado método interativo, em que as pessoas interpretavam suas próprias vidas diante da câmera. Cada participante/personagem produzia mediante a presença da câmera idéias que, à semelhança da experiência psicanalítica brotavam de suas subjetividades e da experiência imediata (psicanalítica ou fílmica, conforme o caso). (SALIS, 2005: p.13)

Ou seja, em Crônica, tanto os participantes, quanto os produtores (estes também participantes) acreditam na intervenção direta sobre a realidade para se produzir o acontecimento a ser registrado. Isso é observado na cena em que todos (Morin, Rouch, Marceline, Landry e outros) estão conversando ao redor de uma mesa e na passagem desta para a cena seguinte, na qual Marceline vaga pelas ruas de Paris. Na primeira, Marceline está falando de sua opinião quanto a se relacionar com negros e a partir da intervenção de Rouch, o tema da conversa passa para a experiência dela no campo de concentração nazista.

Há, portanto, uma interferência explícita dos diretores que, atuando na cena da mesa, perguntam a Landry se ele sabe o que significam aqueles números tatuados no braço daquela. Ele diz não saber e a palavra é passada a Marceline que lhe explica que aqueles números eram gravados nos corpos dos judeus aprisionados, durante a Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração. Ao final dessa cena, que termina com uma imagem de Marceline segurando uma rosa branca, é inserido um dos planos em que ela caminha pelas ruas de Paris.

Na próxima seqüência de planos ela reencena e revive lembranças que tem de seu pai, reconstruindo sua experiência a partir da atualização de um passado vivenciado por ela. Durante essa passagem, afirma ter atuado para a câmera ao falar aquelas palavras, porém, disse somente coisas que vinham de sua memória. Conta ter pensado nesta seqüência ao assistir a cena em que Marilou chorou perante a câmera, enquanto conversava com Morin.

Observa-se então que, como marco inaugural do cinema-verdade, em Crônica de um verão a presença da câmera é assumida e os produtores adotam uma postura de provocar a realidade para que esta se manifeste, produzindo o acontecimento, que não seria possível sem a presença de todo esse aparato humano e técnico. Não mais importando a distinção entre sinceridade/encenação ou ficção/real, o cinema verdade admite que a realidade é modificada pela presença da câmera.

Ao inaugurar essa nova forma de se fazer/pensar documentário, Crônica de um verão amplia o horizonte de inteligibilidade e de significação deste gênero cinematográfico.

Como indicado anteriormente, o filme se desenvolve a partir de duas interrogações. Uma destinada às pessoas, sobre seu tempo e a outra, destinada ao próprio cinema. Esta última é realizada através da experimentação, descrita acima, de outras formas de se realizar um documentário, que fugissem aos métodos coerentes ao modelo de verdade tanto em produções ficcionais quanto no cinema documentário.

A captação do som direto e sincrônico às imagens e o surgimento de câmeras portáteis tornou viável tanto as experiências do cinema direto como do cinema verdade. E, apesar de fazerem uso desse mesmo aparato técnico, esses dois tipos de documentário caminham em direções distintas. Em Crônica, essa nova tecnologia não buscou proporcionar somente uma maior verossimilhança ao registro cinematográfico, mas dar voz aos sujeitos retratados, para que pudessem dizer de si mesmos, debater com outros e fabular acerca de suas experiências. O registro sincrônico do som com a imagem forneceu um maior dinamismo ao filme e humanizou ainda mais o olhar destinado aos participantes. Permitiu que Marceline saísse às ruas e perguntasse aos transeuntes duas simples questões: “Você é feliz?” e “Como você vive?”. E, essas duas questões remetem à segunda interrogação observada no filme, aquela a qual Crônica destina ao seu tempo.

O filme se propõe como uma experiência afetiva a ser vivenciada/sentida pelo diretor e pelos participantes, engendrada por meio do uso do dispositivo cinematográfico. Essa proposta humaniza e singulariza os relatos e as experiências vividas por aqueles sujeitos.Essas experiências não mais se restringiam ao modelo da verdade do cinema habitual. Elas deviam ser vividas não apenas como um acontecimento externo, mas, como algo que atravessasse fisicamente o corpo do sujeito, a partir dos afetos que nele pudesse causar. Marilou, a imigrante italiana, por exemplo, fala à câmera de forma muito emotiva e aberta, não parecendo se intimida. Experimenta aquele momento de uma maneira profunda e afetiva, parecendo estar a beira de um ataque de nervos. A discussão, iniciada após a exibição de trechos do filme para os participantes, não tinha mais relevância. Independente da resposta, Marilou “estava mostrando o que havia de mais verdadeiro em si mesmo”, como Morin constata ao fim do filme.

Jean Rouch e Edgar Morin apresentam trajetórias de vida distintas, porém os pensamentos desses dois amigos convergem na consciência mútua da complexidade, não-reducionista, da realidade. Como bem diz Rubem Caixeta, "Jean Rouch acreditava que nada podia ser uma barreira à criação. Acreditou acima de tudo na possibilidade de fazer uma ponte entre as diversas línguas e tradições culturais, na possibilidade de suprimir as fronteiras entre a arte e a ciência, entre nações" (CAIXETA, 2004: 144). Da mesma forma, Morin, em sua defesa da complexidade como método de observação do mundo, admite a necessidade de se ter um olhar paciente, não presunçoso ou totalizante sobre a vida. A própria proposta de se fazer um experimento de interrogação cinematográfica, como ele cita em Crônica, diz dessa não presunção em se alcançar a verdade última das coisas. Isso é evidente na fala de Rouch quando refletia com Morin, sobre o rumo que o filme tinha tomado: "queríamos fazer um filme de amor e fizemos um filme de indiferença. Não de indiferença, mas um filme de reação. Uma reação que nem sempre é positiva" (Crônica de um verão).

Nessa mesma sequência, Morin se mostra um pouco decepcionado, não como um cientista social, mas, afetivamente, pois, Marilou e Marceline, as participantes/personagens com as quais ele mais se identificou, foram rechaçadas por outros participantes. Conversando com Rouch ele diz que pensava que todos se identificariam com elas da mesma forma que ele. Rouch, por sua vez, o consola dando remetendo à sua idéia de que o importante é a verdade dono cinema. cinema e não verdade.

Crônica de um verão como muitos outros documentários se pauta na realidade e sua a maneira de tratar essa realidade é o que o coloca como o marco inicial do cinema verdade. O fato de não existir um roteiro pré-definido, a intervenção dos diretores e a criação de situações artificiais para os encontros dos participantes com a câmera fazem dele uma experiência inaugural, uma crônica experimental.

Não há somente a proposta de se querer saber de como aqueles franceses viveram aquele verão. Mas sim a de lapidar, através de “aproximações sucessivas” as respostas dadas, procurando nas falas dos participantes aspectos afetivos de suas experiências mesmo que diante do olhar provocador da câmera. Isso talvez faça Crônica de um verão se comunicar “mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo o dia" (CANDIDO, 1992: 19).

Referências Bibliográficas
CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: A crônica – O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Editora Unicamp, 1992.
DA-RIN, Silvio. Verdade e Imaginação. In: Espelho Partido: Tradição e Transformação do Documentário. Azougue Editorial, 2004.
DELEUZE, Gilles. As potências do falso. In: A imagem-tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
MORIN, Edgar. Problemas de uma epistemologia complexa. In: O problema epistemológico da complexidade. 2a.Edição. Publicações Europa-América.
QUEIROZ, Rubem Caixeta de. “Jean Rouch: o sonho mais forte que a morte”. In: Devires - Cinema e Humanidades, Vol.02. Belo Horizonte:Fafich, 2004.

Sites consultados
http://www.ambrafrance.org.br/
http://www.cinefrance.com.br/
http://www.geocities.com/
http://www.tvcultura.com.br/
http://www.wikipedia.org.br/

..........................................................................................................................................................................

::Ensaio 02
Diante do olho provocante

Por Clara Karmaluk, Joyce Athie, Mariana Congo, Tatiana Gibram e Sheila Fogueral

"O que o cinema deve apreender não é a identidade de uma personagem, real ou fictícia, através de seus aspectos objetivos e subjetivos. É o devir da personagem real quando ela própria se põe a ‘ficcionar’, quando entra ‘em flagrante delito de criar lendas’, e assim contribui para a invenção de seu povo."
Gilles Deleuze

Crônica de um Verão (França - 1960), filme de Jean Rouch e Edgar Morin é considerado uma experiência inédita do cinema-verdade. Já em seu início, o próprio Rouch afirma que o “filme não foi representado por atores, mas vivido pelos homens e mulheres que dedicaram momentos de suas vidas a uma experiência nova de cinema-verdade”. Diferentemente da proposta do cinema-direto americano, de Drew e Leacock, que buscava a neutralidade na relação entre personagem e câmera, o cinema-verdade assume a presença daquele que filma, da câmera e da sua potencialidade de criar e constituir uma realidade fílmica.

O filme coloca em cena o um qualquer, o homem ordinário, aquele que, segundo César Guimarães (2007) “não configura nenhuma outra essência que a existência fugitiva de sua singularidade”. Esse um qualquer é distinto, diferenciado e singular, e não deve ser confundido com qualquer um. Ele não está contido em uma determinada classe, mas possui sua própria pertença; é único e exemplar: torna exposta a sua condição de “ser-assim[1]”, sem que esta condição seja uma propriedade ou caráter seu. A singularidade, assim como o rosto humano, aponta, simultaneamente, para o universal – através de traços que se assemelham à espécie, e para o individual. Esta concepção do singular acaba, portanto, tornando-se equivalente à de um qualquer.

Em Crônica de um Verão o um qualquer aparece representando sua própria vida diante dos aparatos técnicos, que em vez de se esconderem, constituem parte essencial do processo de constituição do filme. A construção da realidade fílmica se dá pela maneira como se investiga o cotidiano desses personagens - homens ordinários – na medida em que eles se transformam por meio da relação com a câmera. O filme é um acontecimento, não existe uma realidade prévia a ser filmada.

É a filmagem que desencadeia as relações que se explicitam na tela, sendo o único meio de penetrar na realidade dos personagens, que buscam representar suas próprias vidas. O ato de filmar envolve uma relação de troca entre os envolvidos. Segundo Comolli, o filme não é o olhar do cineasta sob o objeto; ele próprio (o cineasta) está exposto ao olhar daquele que é filmado. E este olhar – que é consciente e percebido - é apropriado e reenviado àquele que lançou o olhar, passando, agora, a ser também objeto do olhar do outro. Dessa forma, as pessoas nos reenviam e modificam o nosso próprio olhar, que nelas incidiria.

É nesse sentido que o conceito de auto-mise-en-scene[2], formulado por Comolli, demonstra como as relações estabelecidas no ato de filmagem possuem um caráter construtivo, na medida em que a câmera -um olhar- desperta, “aciona complexidades antes não elaboradas”. (RENNÓ, 2005:16). Como aponta Comolli:

Aquele que eu filmo vem também ao encontro do filme com seu habitus, esse tecido espremido, esta trama de gestos apreendidos, de reflexos adquiridos, de posturas assimiladas, a ponto de terem se tornado inconsciente; e que fazem com que, segundo os campos onde a pessoa filmada intervenha (família, escola, trabalho, etc), ela se acha engajada e tomada nas mises-en-scènes, requisitadas pelos seus campos – e mesmo compreendida, incorporada por cada uma das pessoas desses campos. (COMOLLI, 2001:113)

Um sujeito que se destina ao filme se impregna, incorpora o filme, se ajusta à operação cinematográfica, o que significa dizer que a câmera não se torna invisível, e que o sujeito adota uma postura frente ao olhar que lhe é lançado. Esse olhar intimida, em um primeiro momento, mas é ele quem revela o visível e o invisível. É a partir da interação entre câmera e personagem que este revela, por meio da palavra, algo que estava escondido, latente, invisível; através da presença da câmera a verdade pode ser construída.

A discussão proposta por Crônica de um Verão diz respeito ao fato de as pessoas serem tocadas pela presença de uma câmera e alterarem seus modos de agir e se relacionar. Os personagens/atores criam outra dimensão de si, uma nova máscara em meio a tantas outras. O personagem diante da câmera porta-se como se estivesse de frente a um recém-conhecido, por quem se sente inicialmente intimidado. Somente a convivência e a conseqüente criação de relações permitem que ele se acostume com a presença daquele que, num primeiro momento, lhe era estranho. A construção de laços torna possível a revelação da personalidade do personagem, uma vez que permite que ele passe por um devir, possibilitando que ele se aproxime do terreno da ficção, através da representação, que acaba lhe conferindo um maior aspecto de realidade.

Segundo Erving Goffman (1996) “todo homem está sempre e em qualquer lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos.” Na verdade, “todos aqueles que são filmados já são atores em outras mises-en-scène, que precedem e, às vezes, contrariam aquela do filme” (COMOLLI, 2001:114). Contudo, para Comolli, o documentário não pode se contentar simplesmente em reproduzir a mis-en-scène que vem do habitus; ele deve, pois, ultrapassá-la. Assim, não haveria sentido uma discussão[3], como a que acontece ao fim do filme, na qual se questionava se os personagens estariam representando ou não, pois em toda e qualquer situação da vida cotidiana, o relacionamento com outro indivíduo é travado através de um conjunto de representações. A representação seria, como o próprio nome diz, a atividade do indivíduo caracterizado pela presença frente a um grupo de observadores sobre os quais ele tem alguma influência. De acordo com Comolli, existe em todas as pessoas uma espécie de saber inconsciente diante do olhar do outro, que gera uma tomada de postura, de posição. Como ele mesmo diz: “O sujeito filmado fatalmente identifica o olho negro e redondo da câmera como o olhar do outro materializado. Por um saber inconsciente, mas certeiro, o sujeito sabe que ser filmado significa se expor ao outro.” (COMOLLI, 2001:109)

É o que acontece com Marceline, na cena em que relembra o pai: ela está ciente da presença da câmera, e a sua performance, como ela própria confessou, decorreu da vontade de aparecer de forma que a sua atuação tivesse efeito na tela, na tentativa de guiar o julgamento de um futuro auditório. Mas é importante ressaltar que ela ultrapassou em muito a representação que os outros esperavam dela na vida cotidiana: ele foi além do reconhecimento do eu pelos outros.

De acordo com Ruben Caixeta de Queiroz (2004), a câmera é um olho provocante. O personagem sabe que está sendo filmado e, na medida em que se deixa levar, se envolver por essa situação, a verdade vem à tona. Uma relação entre o personagem e a câmera é construída, resultando numa espécie de encenação, que é o modo com que aquele que é filmado encontra para exprimir sua verdade diante da câmera. Aqueles que participaram do filme sofreram uma “singular metamorfose”, na medida em que foram transformados pelo filme enquanto o faziam.

Em Crônica de um Verão, a sincronização entre o som e a imagem permite o uso direto da palavra que, encarnada no personagem, torna-se propulsora da espontaneidade. Esta, por sua vez, pode ser observada nos momentos em que situações sociais se revelam no filme, a partir das individualidades nele inscritas: sentados em mesas, os personagens discutem assuntos como a guerra da Argélia. É por meio da fala, das superposições de vozes durante os diálogos e das intervenções promovidas pelos cineastas, que conversas e sentimentos são instigados.

Em Eu, um negro (1957), outro filme de Rouch, no qual não havia som direto, os personagens tinham a possibilidade de fabular, ou seja, contar histórias fantasiosas como se fossem verdade, diante das imagens gravadas, criando um novo sentido para elas através da inserção da fala posteriormente. Aqui, a palavra cria, reinventa. Já em Crônica de um Verão, a palavra faz parte do processo de transformação dos personagens diante da câmera. Em seu texto O devir de todo mundo, César Guimarães apresenta uma conversa retratada por Godard, em Vivre sa vie (1962), entre a protagonista Nana e o filósofo da linguagem, Brice Parain. Este revela que, para se encontrar a verdade, “é preciso se separar da imediatez da vida cotidiana por uma elevação que nos permita ascender ao pensamento” (GUIMARÃES, 2007:143). E, para ele, só é possível pensar por meio das palavras, sendo elas, portanto, a única forma de possibilitar o encontro dos indivíduos com as suas verdades. Segundo Gilles Deleuze, “o personagem se torna outro quando se põe a fabular, sem nunca ser fictício”. Dessa forma, a própria transformação dos personagens, que ocorre ao longo do filme, depende da capacidade de cada um de fabular. A personagem deixa de ser real ou fictícia, transforma-se em alguém “que vence passagens e fronteiras porque inventa enquanto personagem real, e torna-se tão mais real quanto melhor inventou”. (DELEUZE: 1990, 184)


A transformação dos personagens
O filme Crônica de um verão surge do interesse de Rouch e Morin em demonstrar como as pessoas vivem, como se portam diante da vida, se são felizes, o que fazem, em uma espécie de registro etnográfico.

Marceline
A primeira personagem mostrada é Marceline. Judia que já teve passagem em um campo de concentração, ela se apresenta, em um primeiro momento, timidamente, dividindo a cena com Rouch e Morin. Juntos, eles discutem o que seria a proposta de Crônica de um Verão e a possibilidade da câmera intimidar, ou não, as pessoas. Nesse momento, a própria Marceline admite que a câmera a intimida. Rouch questiona: “O que te intimida?”; e ela responde: “Fico intimidada porque não sei se estou preparada”. Nesse momento, Marceline está em segundo plano, apenas responde às perguntas feitas por Rouch e Morin e ainda não se mostra capaz de propor algo para a câmera.

Já em sua segunda aparição, a personagem Marceline surge nas ruas (juntamente com Nadine), questionando as pessoas: “Você é feliz?”. Com essa proposta, ela representa o papel inicialmente dado a Rouch e Morin, papel daqueles que questionam e provocam os indivíduos. Em outro momento do filme, Marceline aparece juntamente com o namorado Jean-Pierre. É um momento íntimo, em que Pierre fala sobre a infelicidade, a incapacidade de fazer Marceline feliz – ela apenas escuta. Nessa cena é possível observar o papel decisivo de Morin como catalizador das transformações dos personagens durante o filme e indutor das mesmas. Morin fala diretamente para Marceline: “Você quer dizer algo?”, e a partir disso é que ela começa a falar sobre a situação que Pierre descreveu.

Apesar do assunto delicado, a câmera já não parece intimidar tanto. Ainda que em alguns instantes Marceline ainda olhe diretamente para a objetiva, na maior parte da cena ela fala para a câmera. Ao longo do filme, é possível perceber que ela aprende a conviver com a câmera, até chegar ao ponto máximo de sua atuação. Na cena seguinte, em que revive o encontro que teve com o pai no campo de concentração, ao caminhar pelas ruas de Paris, Marceline já domina essa relação: ela sabe qual é a melhor forma de aparecer para o filme. Ela já não olha para a câmera. Cinematograficamente é uma das cenas mais belas – suas palavras são recitadas com força de poesia. O movimento da câmera é suave, o enquadramento potencializa a força dramática da cena. Nesse momento, é importante ressaltar que o filme se faz do jogo entre personagem e cineasta, entre aquele que está diante da câmera e aquele a conduz. Da maneira como encena, ela sabe que a proximidade com a ficção potencializa o caráter de realidade da cena.

Na seqüência final de Crônica de um Verão (na qual o filme – exibido dentro do filme – é comentado por aqueles que participaram do seu processo de construção), Jean Pierre comenta: “Essa seqüência é melhor que as outras precisamente porque ela está atuando”. Nas palavras de Marceline:

"Não posso dizer que eu não fosse sincera”, diz Marceline, “mas eu me controlava constantemente. Na cena da lembrança da deportação, eu interpretava, porque eu encenava algo que eu já tinha vivido. [...] Eu poetizei minhas lembranças. Tudo estando muito distante da crise, essa cena permaneceu sincera, pois através dela eu exprimi uma certa realidade, porque as lembranças que eu evoquei são lembranças verdadeiras. [...] Estou muito longe do personagem que está no filme. Ele não é verdadeiro, mas ele reflete o personagem real. Isso me parece verdadeiro, mas não é realidade. (DA-RIN, 2004: 155)

A participação de Marceline no filme exemplifica o propósito de Rouch e Morin de alcançar a realidade por meio da ficção. Quanto mais o personagem é exposto à câmera, maior é a abertura para a fabulação. O personagem encena sua própria realidade, conferindo ao “documento uma aura de ficção”. (DA-RIN, 2004:158)

Ângelo
Outro personagem que recebe destaque, Ângelo, é um operário que trabalha na fábrica da Renault. Ele é a verdadeira representação do homem ordinário. Aparece pela primeira vez sentado à mesa, discutindo - junto a outros operários - sua rotina de trabalho, como qualquer um. Ângelo também é filmado quando está trabalhando na fábrica, juntamente com outros funcionários, e a própria câmera se perde ao mostrar os outros, retornando a Ângelo após certo tempo. Todos os personagens poderiam ser qualquer um, entretanto, sua participação na realidade fílmica os tornam um qualquer. O filme permite que a singularidade desses sujeitos seja evidenciada, exibindo sua condição de um qualquer.

A transformação de Ângelo pode ser notada na cena em que ele conversa com o africano Landry e lhe fala sobre a vida dos operários franceses, como se não fosse ele próprio um proletário – ao analisar o outro, analisa, sem consciência, sua própria vida. Aqui, as transformações vão acontecendo devido a um momento de entrega e reflexão do personagem diante da câmera. Ângelo fala com um certo desprezo sobre a vida dos operários, o que para Landry representa quase uma descoberta. A imagem que o africano tinha dos operários franceses (que trabalham na fábrica da Renault e em sua maioria possuem automóveis, entre outras características) vai sendo desconstruída ao longo da conversa, onde aparece a imagem de um operário que é oprimido pelo trabalho. Além disso, se no início do diálogo a conversa era sobre generalidades, logo depois ambos ficam mais à vontade, Ângelo chega a fazer perguntas para Landry sobre preconceito e ambos já se tratam de maneira informal.

Quando na cena final do filme os personagens discutem a atuação deles mesmo, os julgamentos sobre o diálogo entre Ângelo e Landry são diferenciados. Alguns que o primeiro está representando, politizando seu discurso com generalidades. Ângelo se defende, dizendo ter sido honesto, real. Para Ângelo, o calor da discussão o fez “esquecer” da presença da câmera, e o próprio Morin afirma ter visto naquela cena o desabrochar de uma amizade.

Rouch e Morin
Em muitos momentos do filme, a câmera e até mesmo os diretores assumem a posição de indutores de um processo de descoberta dos personagens que se entregam à reflexão sobre si mesmos. É justamente por isso que a presença declarada da câmera e a participação dos cineastas na realidade fílmica se tornam aspectos relevantes e fundamentais para a modificação dos personagens de Crônica de um Verão. Morin e Rouch se comportam como uma espécie de guias: incitam os personagens a tocarem determinados pontos durante as conversas. É como se eles tivessem consciência do caminho que cada personagem deveria seguir a fim de que a grande transformação acontecesse com eles. Na cena em que Marylou – enquadrada sozinha - fala para a câmera, é a voz de Morin que pode ser escutada instigando-a, juntamente com a presença da câmera. São dois propiciadores da modificação da mulher que, se revela e se transforma perceptivelmente nesta cena. Contudo, os cineastas também se transformaram ao longo do filme, se submetem à essa experiência. Eles não estão imunes às transformações que o filme promove, uma vez que também são personagens – representam seus papéis de cineastas. Como bem explicita Joana Rennó:

A personagem está se tornando outra, e não é mais separável desse devir que se confunde com um povo. Mas o que dizemos da personagem vale, em segundo lugar e notavelmente, para o próprio cineasta. Também ele se torna um outro, na medida em que toma personagens reais como intercessores e substitui suas ficções pelas próprias fabulações deles, mas, inversamente, dá a essas fabulações a figura de lendas, efetua a sua ‘acessão à legenda’. Rouch faz seu discurso indireto livre, ao mesmo tempo em que suas personagens fazem o da África. (DELEUZE APUD RENNÓ, 1990:185)

Marylou
Marylou é uma imigrante italiana que, em Crônica de um Verão, fala sobre como é sua vida na França e as diferenças em relação à vida que levava na Itália. No decorrer do filme, ela se emociona e se sente mais à vontade diante da câmera, assim como se sente mais aberta para a vida, para amizades e para o amor. Ela acredita que a verdade no cinema ocorre quando o personagem está à beira de um ataque de nervos e se esquece da câmera. Este processo ocorre com Marylou, em sua segunda aparição. Deprimida, então, já sabe lidar com a presença da câmera, e emocionada, relata detalhes de sua vida. Contudo, esta sinceridade não agradou a todos os personagens, outro ponto marcante da discussão entre os que assistiam a exibição do filme na parte final de Crônica de um Verão. Alguns criticaram Marylou por revelar-se tão abertamente, dizendo que não gostariam de conhecê-la, e que quando não era chata, era muito sem pudor. Mas a personagem foi defendida por Morin – que revela sua afeição por ela. O autor do filme se mostra, ao final, decepcionado: ele esperava que Marylou fosse adorada por todos.


“Para uns parece real, para outros, falso”
Como se vive? Como se vira na vida? Essas são as questões propostas e discutidas ao longo de Crônica de um Verão. O filme, dispositivo experimental, surge na medida em que o experimento se desenrola e constrói seus personagens: homens ordinários transformados pela própria construção da realidade fílmica.

O um qualquer passa por um devir que o faz sair da indistinção, da indiferença. Contudo, para que essa condição seja ultrapassada e a singularidade desse sujeito seja alcançada, é preciso “tempo puro, duração do filme”. (GUIMARÃES, 2007: 145)

As relações são criadas diante da câmera e expostas à opinião dos próprios personagens, que dão suas impressões a respeito do que viram. Eles mesmos parecem se dar conta da complexidade existente na relação entre ficção e real. Não há um consenso sobre as relações entre os sujeitos, e a própria relação com a câmera. Como Morin disse no final de Crônica de um Verão: “Diante dessa gente, que [os personagens/atores] poderiam encontrar na vida, eles se sentem desamparados, se sentem concernidos e recusam isso. Outras pessoas se comovem... Conseguimos transmitir parte do que queríamos dizer”. Essa espécie de decepção de Morin pode ser explicada, em parte, por uma citação de Hartmut Bitomsky que diz que:
Com o filme documentário surge uma expectativa de realidade, de revelação e de verdade, que pode ser chamada de saudosista. Mas há também o seu oposto: uma decepção, uma insuficiência de todas aquelas verdades e realidades que são traduzidas à luz de modo documental. (BITOMSKY, 2001: 160)

Como Rouch e Morin comentam ao fim de Crônica, se o desejo inicial era fazer um filme sobre o amor, eles conseguiram fazer um filme sobre a indiferença. A impressão que temos ao ver o documentário é de que ele nos apresenta a vida: aqueles que aparecem na tela não são heroínas ou vilões - são um qualquer, em toda sua singularidade, que os fazem humanos. E essa condição de um qualquer é imposta ao próprio Rouch, quando a pergunta feita no início do filme se volta para ele: você é feliz?


Referências bibliográficas
BITOMSKY, Hartmut. O mundo documentário. In: Catálogo Forumdoc.bh.2001, Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2001.
COMOLLI, Jean-Louis. Carta de Marselha sobre a auto-mise en scène. In: Catálogo Forumdoc.bh.2001, Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2001.
COSTA, Ricardo. A outra face do espelho. Jean Rouch e o “outro”. In: Biblioteca Online de Ciências da Comunicação, 2000.
DA-RIN, Sílvio. Verdade e imaginação in: Espelho partido: tradição e transformação do documentário, Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2004.
DELEUZE, Gilles. As potências do falso. In: A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
GUIMARÃES, César. O devir todo mundo do documentário. In: O comum e a experiência da linguagem. Organizadores: GUIMARÃES, César; OTTE, Georg e SEDLAMAYER, Sabrina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
QUEIROZ, Rubem Caixeta. Jean Rouch: o sonho mais forte que a morte. In: Devires - Cinema e Humanidades, Vol.02. Belo Horizonte, 2004.
RENNÓ, Joana de Andrade Pinto. A construção do personagem no documentário – poéticas do singular. Dissertação de Mestrado da Fafich/UFMG. Belo Horizonte, 2005.


Notas
[1] O “ser-assim”, segundo Jean-Luc Nancy, apud Guimarães, não são as qualificações de um sujeito, mas sim a sua exposição. Cf. GUIMARÃES, César, 2007: 140.
[2] “Assim, a auto-mise-em-scène seria a combinação de dois movimentos. Um, que vem do habitus e que passa pelo corpo (o inconsciente) do agente como representante de um ou vários campos sociais. O outro, que tem a ver com o fato de que o sujeito filmado, o sujeito em vista do filme (a ‘profilmia’ de Souriau) se destina ao filme, conscientemente ou inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação cinematográfica, nela coloca em jogo sua própria mise-en-scène, no sentido da colocação do corpo sob o olhar; do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro (a cena).” (COMOLLI, 2001: 115)
[3] Ao final de Crônica de um Verão, os personagens que representaram no filme aparecem, juntamente com Rouch e Morin, comentado suas próprias atuações e as dos outros personagens.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Nossa Música - Godard (2004)

::Ensaio 01
Campo. Contracampo. Música

Por Adriana Mitre, Bruno Apolônio, Victor Guimarães, Victor Santos e Terêncio Pinho

“Todo grande documentário tende à ficção, e toda grande ficção tende ao documentário”. Jean-Luc Godard

Nossa Música se desenvolve na dialética entre o documentário e ficção, sem que haja a preocupação de discernir um do outro. Este texto tem o propósito de evidenciar essa afirmativa. Longe de estabelecer limites entre uma coisa e outra, busca justamente entender essa relação. A estrutura fragmentária do texto foi uma opção necessária para tentar dar conta do filme de Godard, em sua amplitude.

O filme, em sua primeira parte – “Inferno” –, apresenta uma série de imagens que retratam a violência, o horror, a guerra, a morte. Essas imagens são retiradas de filmes ficcionais e de documentários que representam as atrocidades da humanidade. Acompanhada de uma música impactante, do silêncio e de poucas falas, o “Inferno” é marcado por uma sucessão de imagens de guerras, como flashes. A montagem rápida não permite uma assimilação dos detalhes, mas é fácil distinguir uma temática definida, baseada no sofrimento e na perversidade.

Jean-Luc Godard é um diretor que valoriza os fragmentos. A primeira parte representa as características de um Godard que faz seus recortes a fim de preservar a memória e de reunir informações múltiplas de uma humanidade caótica. Estas características estão presentes em muitos de seus filmes, como Para sempre Mozart (1996) ou Elogio ao amor (2001).

No Inferno, as imagens são o que mais interessa. A presença do texto (também fragmentado) torna-se um complemento das imagens, sem, no entanto, explicá-las. Desta forma, as imagens, sem o acompanhamento de legendas, não são relacionadas aos seus locais de origem ou às suas particularidades. Este aspecto possibilita perceber a temática abordada como algo universal, referente ao homem e sua barbárie. É exatamente por isso que as imagens ficcionais podem ser tão impactantes quanto as documentais. Afinal, essas imagens representam parte da realidade humana e, de alguma forma, reconstituem algumas crueldades e injustiças históricas, como o extermínio dos índios.

Não há como desvincular completamente a ficção da realidade. Jean-Louis Comolli ressalta no seu texto “Sob o risco do real”:

A prática do cinema documentário não depende, em última análise, nem dos circuitos de financiamento, nem das possibilidades de difusão, mas simplesmente do bem querer – da boa graça – de quem ou o quê escolhemos para filmar: indivíduos, instituições, grupos. O desejo está no posto do comando. As condições da experiência fazem parte da experiência”. (COMOLLI, 2004: 99-100)

Segundo o teórico, o documentário seria a representação do real, exposto a constrangimentos e imerso nas regras do jogo social. Como o real não é de todo filmável, o que um filme alcança – ele documentário ou ficção – é a representação. Nesse sentido, o documentário só poderia ser construído em fricção com o mundo.

Um bom exemplo de imagem documental apresentada na primeira parte do filme é a de um trator empurrando um amontoado de corpos nus. Esta imagem foi retirada por Godard de um filme chamado Memory of the camps (1985). Nesse documentário o excesso do horror é a grande problemática. Afinal, como fazer o espectador acreditar no inacreditável? Ou ainda, como fazer o espectador projetar-se no corpo do outro? Comolli, no texto “A última dança: como ser espectador de Memory of the camps?”, ressalta exatamente a dificuldade de mostrar, neste filme, o que jamais tinha sido mostrado. Um filme limite, que pelos seus excessos poderia cair no exagero e no propagandístico. Os excessos nas imagens dos campos de concentração são percebidos pelo desconforto de ver o outro, o que é exibido, o corpo humano em situação deplorável. Há a dificuldade de se reconhecer no que é visto. Talvez seja por isso, que Godard tenha feito o recorte de imagens do Memory of the camps. É uma forma de incomodar o olhar e, desta forma, incomodar o espectador diante da violência humana.

Nesse texto de Comolli há um relato do historiador Pierre Sorlin, sobre George Rodger,o câmera do filme Memory of the camps:

Rodger explicou que a sensação foi tão intensa, que só conseguiu filmar assumindo a postura do técnico. Ou seja, colocando-se questões sobre a iluminação, sobre o local de onde poderia conseguir um bom panorama, sobre o melhor enquadramento ou o melhor ângulo. Trabalhando como se o objeto não existisse. (COMOLLI, 2005: 13)

Ao tentar fugir dos constrangimentos inevitáveis ao documentário, não há como as imagens se servirem de um real puro e desinteressado. Para isso, utilizam-se as técnicas, mencionadas acima, que são formas de selecionar, de interferir na realidade que se pretende enfatizar. No que tange ao enquadramento, por exemplo, Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros, ressalta o fato de que enquadrar é excluir.

Ainda no “Inferno”, as imagens compõem campo/contracampo, procedimento da montagem cinematográfica que faz alternar os planos de duas cenas que estão dialogando. Um bom exemplo desta composição é uma primeira imagem de crianças que brincam de guerrear, oriunda do filme de François Truffaut, Les Mistons, de 1957. Nesse aspecto, elas vivem a ficção própria da idade, que é a diversão. Ao mesmo tempo, a brincadeira refere-se a algo que está, de alguma forma, vivo nestas crianças: os noticiários, tempo de guerra, as referências violentas. Numa segunda imagem, uma criança aparece com uma arma de fogo real, o que propõe certa realidade capaz de abafar a ficção das brincadeiras. Campo e contracampo.

Os enunciados que compõem a parte do “Inferno” são enigmáticos, mas são de grande impacto. Assim como as imagens, esses textos também fazem referência à dualidade entre realidade e ficção: “Assim no tempo das fábulas, após as inundações e o dilúvio, homens armados surgiram da terra e se exterminaram”. Nessa frase, a ficção (à qual as fábulas são comumente remetidas) remonta à realidade crua da convivência entre os homens.

Da heterogeneidade ao ensaio
“Você se lembra de Sarajevo?” – é a pergunta que aparece ao final do “Inferno”, e que de certa forma introduz o “Purgatório”. A segunda parte do filme começa com imagens da capital bósnia, e aos poucos o espectador encontra uma cidade trespassada pela guerra. Em meio a ruínas e reconstruções, imagens e enunciados que dizem da realidade, transitam personagens e outros elementos de um filme de ficção.

Nossa Música vai a Sarajevo. Longe dos estúdios, perto dos escombros, é impossível não lembrar de Roma, cidade aberta (Roberto Rosselini, 1945). As imagens dos prédios em ruínas e da ponte Mostar nos lembram os cortiços romanos, e configuram um gesto decisivo do cinema moderno. Assim como Rosselini, Godard vai à rua. Rodar em exterior, para Deleuze, é um movimento do neo-realismo e da nouvelle vague que objetiva “extrair deste [do exterior] essas descrições puras que desenvolvem uma função criadora e destruidora” (DELEUZE, 1990: 155).

Mas o realismo de Godard se distancia firmemente tanto do realismo do cinema clássico quanto do neo-realismo italiano. Os filmes de Godard são pouco narrativos, e dão preferência a um conjunto de discursos heterogêneos (que incluem citações das mais diversas) sobre a realidade, que buscam trazer uma reflexão sobre ela. A presença das citações, retiradas dos contextos mais distintos e sem uma preocupação maior em atribuí-la ao seu autor, é marcante em vários filmes do diretor, como nos recentes Para sempre Mozart e Elogio ao amor.

Outra dimensão desse realismo é seu aspecto fragmentário, a construção de uma narrativa descontínua, não-linear, como é possível perceber em filmes como Je vous salue, Marie (1985), e que é também é uma das marcas de Nossa Música. Algumas cenas do filme não formam um todo exatamente coerente, por meio das quais seria possível identificar o encadeamento da “história”. Numa seqüência, somos apresentados a uma estranha biblioteca, onde os livros são amontoados no chão. O lugar é cheio de simbolismo. A biblioteca guarda o lugar da cultura, e o fato de ela estar em ruínas pode ser visto como o emblema do que uma guerra pode produzir. Ainda na biblioteca, ao mesmo tempo em que uma criança devolve um livro, o escritor Juan Goytisolo prepara sua palestra sobre o poeta Valente Jorge San Malino e tece reflexões sobre a violência do horror e a situação decisiva na qual se encontra a humanidade. A reunião de personagens e de discursos beira o absurdo, quando um grupo de indígenas norte-americanos aparece para falar sobre as injustiças de sua história. Mais do que a importância de todos esses eventos para o encadeamento totalizante da história, o que é relevante é como o filme constrói uma reflexão, servindo-se de discursos vários sobre a realidade.

Em 1977, Ismail Xavier apontava que, em Godard, havia um contínuo movimento em torno da utilização de “um universo visual heterogêneo, composto de diferentes materiais”, e que o cineasta avançava decididamente rumo à descontinuidade do “cinema-discurso” – que reúne fragmentos, enunciados, citações para compor um todo discursivo. É o aspecto ensaístico dos filmes de Godard, apontado também por Arlindo Machado. Machado discute a possibilidade de ensaios não escritos, ensaios em forma de enunciados audiovisuais. E, para ele,

É com Jean-Luc Godard que o cinema-ensaio chega a sua expressão máxima. Para esse notável cineasta franco-suíço, pouco importa se a imagem com que ele trabalha é captada diretamente do mundo visível ‘natural’ ou é simulada com atores e cenários artificiais, se ela foi produzida pelo próprio cineasta ou foi simplesmente apropriada por ele, depois de haver sido criada em outros contextos e para outras finalidades, se ela é apresentada tal e qual a câmera a captou com seus recursos técnicos ou foi imensamente processada no momento posterior à captação através de recursos eletrônicos. A única coisa que realmente importa é o que o cineasta faz com esses materiais, como constrói com eles uma reflexão densa sobre o mundo, como transforma todos esses materiais brutos e inertes em experiência de vida e pensamento. (MACHADO, 2003: 10)

Em Nossa Música, a heterogeneidade do universo visual godardiano é evidenciada na utilização tanto de imagens de uma Sarajevo em guerra (ainda no Inferno), quanto nas tomadas documentais das ruas da cidade – especialmente do mercado –, ou ainda nos planos que retratam os prédios em ruínas, observados por uma comovida Judith Lerner, personagem. Acrescido a isso, como não poderia faltar em Godard, há a palavra. Há os discursos descritivos sobre a cidade, sobre a ponte Mostar, sobre os bombardeios. Poderíamos citar diversas cenas, como a visita de Judith à ponte e a voz que fala sobre os corpos que se atiravam sobre a “água mais verde do mundo”. Discursos que, por sua vez, não apagam sua origem. É preciso lembrar que aquele que fala é alguém implicado, e quando a voz varia, a descrição também varia. Um texto que é falado por alguém é diferente desse mesmo texto dito por outra personagem, por outra pessoa. Em outros filmes, como Para Sempre Mozart, Godard enfatiza a relevância dessa passagem do texto pelo corpo dos atores.

Memória
“Tudo no cinema é uma questão de memória”, disse Godard após a exibição de seu Elogio ao amor no Festival de Cannes, em 2002. No caso de Nossa Música, a relação com a memória também se dá com a retomada de discursos sobre o passado da guerra, da cidade. Há, por exemplo, as falas presentes no imaginário coletivo, retomadas no afã de compreender o presente. Numa cena, um professor explica a seus alunos – e a Judith, também presente na sala – algo mais que a história da ponte Mostar. Ele retoma imagens presentes nas referências culturais dos habitantes de Sarajevo. Discursos que falam de um real passado, porém inevitavelmente ficcionalizado pela ação da memória, que sempre implica uma construção. Não é um falseamento, mas o sujeito, ao relatar uma experiência passada, recria, com os elementos próprios do lembrar. Recria assim como o cinema, que, com seus meios, também inventa a partir do que está presente na memória. Se recompor o passado é tornar possível o futuro, contar com os elementos da memória é tornar possível o filme. Godard toma diversos enunciados heterogêneos que se referem à realidade histórica e social – informações históricas, relatos da guerra – e ressignifica, monta. O filme conta com diferentes gêneros de discurso, e tudo contribui para a experiência e para o pensamento.

Segundo Godard, agora escritor, em seu livro Introdução a uma verdadeira história do cinema, temos a impressão de saber o que significam documentário e ficção, mas a coisa não é tão simples. São dois momentos diferentes, “não se pode distinguir uma fala documental de uma fala não documental” (1989: 115). Nossa Música vai ao encontro desse pensamento. Em diversas cenas, parece não importar o procedimento de inscrição do discurso. Se uma fala é dita por Juan Goytisolo, o que importa é o que ele diz, e não a fonte. Pode ser uma citação, uma idéia presente no roteiro ou um pensamento do próprio escritor
.
Ao inserir os personagens numa Sarajevo real, e na necessária reflexão sobre uma guerra que, talvez contrariando Baudrillard¹, realmente aconteceu, Godard produz o efeito de suspender a vontade do espectador de se identificar com o universo ficcional proposto. Nas palavras de Tiago Mata Machado, “assim como Rouch, muitas vezes, parte de personagens reais para fazer ficção com eles, Godard busca, invariavelmente, inserir personagens fictícios em ‘alguma coisa com aspecto documental’” (MACHADO, 1999: 82). É a maneira de fazer do documentário um desvio, gesto tão necessário à ficção moderna, como aponta Comolli. Para o teórico, a ficção deve passar pelo documentário e o documentário passar pela ficção, para que tanto um como o outro renovem sua relação com o espectador.

Como postula Mata Machado, Godard faz uma opção pela potência do falso, longe daquele “parecer verdade” que Deleuze identificava no antigo realismo. Não nos perguntamos se o encontro do livro em Sarajevo realmente aconteceu. A verdade é construída no e pelo filme. A narrativa godardiana não é verídica, não se encadeia com descrições reais (que Deleuze chama também de sensório-motoras), mas a descrição se torna seu próprio objeto, e a narração se torna falsificante. No entanto, ao optar pela ficção, Godard desvia pelo documentário, numa maneira do próprio filme mostrar que nem tudo cabe dentro da ficção. Enfim, novamente citando Mata Machado, “se sua obra só pode ser lida como uma experiência única e original de reestruturação da realidade a partir de seus próprios elementos, é porque ele recai constantemente no imaginário” (MACHADO, 1999: 78). “Imaginário”, nesse caso, evoca o território das fábulas, o país da ficção – que é também o país de Godard, como ele próprio disse um dia na televisão. Ficção que é construída com os “tijolos do real”. E se Truffaut (apud MACHADO, 1999: 81) apontava essa reunião de fragmentos que resultaram no “conto de fadas moderno” que é Acossado, em Nossa Música a versão godardiana da divina comédia é filmada a partir de elementos fragmentários da sociedade moderna, marcada pela guerra e pelo horror.

Atores, não atores
Vários escritores interpretam a si mesmos no filme, assim como o próprio Godard. Em seu filme-ensaio, na acepção do termo utilizada por Arlindo Machado, o diretor desenvolve idéias sobre a construção violenta e conflituosa da sociedade ao longo dos séculos. Um filme-ensaio também pode ser entendido como uma pesquisa empreendida pelo cineasta com os meios do cinema, uma reflexão sem necessariamente apresentar uma conclusão. No caso de Nossa Música, essa característica chega ao extremo de o próprio diretor ser um personagem de seu filme, representando ele mesmo, e expressando-se verbalmente em frente à câmera. É a “explicitação do sujeito que fala” (Machado, 2003, p.2). Além de representar a si próprio, em alguns momentos, quando quer fazer uma citação, Godard insere no filme o próprio autor para que ele mesmo se pronuncie.

Nas primeiras cenas do segundo reino, o purgatório, vários personagens, entre eles Godard, o escritor Juan Goytisolo e Judith Lerner seguem juntos para a embaixada da França. Assim se segue todo o filme: atores, não atores, pessoas representando elas mesmas, contracenando. Um escritor palestino é entrevistado (método narrativo característico do documentário) pela personagem judia. Ninguém melhor para explicar sua teoria do que ele mesmo. Segundo Mahmoud Darwich, a voz do povo vencido só é ouvida pela boca do vencedor, mas ele vem ser o poeta do povo vencido. Todos os escritores que aparecem no filme vêm, eles mesmos, contar suas histórias trespassadas por guerras e conflitos, seja em Lyon em 1943, seja na Bósnia em 1993, seja na Palestina ao longo dos últimos milênios. Os escritores contam no purgatório o que viveram no inferno.

Quando não há escritores, tomam lugar atores profissionais, como é o caso dos índios norte-americanos, e da camponesa que vê a aparição da Virgem de Cambray, “sem movimento, sem profundidade, nenhuma ilusão”. A imagem que acompanha a narração de Godard nesse momento, uma garotinha com roupas contemporâneas folheando um livro de arte, exemplifica uma das principais carácterísticas do filme-ensaio (segundo Arlindo Machado): a voz em off do narrador, divagando, não necessariamente sobre as imagens que acompanham a fala. Na cena, não há nenhuma tentativa de reproduzir uma camponesa da época do Segundo Império.


Cinema: uma possibilidade para entender o mundo
O filme Nossa Música nos faz questionar o tempo todo a relação entre ficção e documentário. Na montagem das imagens no reino inicial, na presença de atores-personalidades interpretando a si mesmos, na presença da cidade de Saravejo como pano de fundo para a história. Mas talvez seja na utilização de termos cinematográficos para entender situações do mundo que o filme mais explicita as convicções de Godard a respeito do tema. Uma utilização que não é nem técnica e nem metafórica, mas que significa fazer do cinema um modo de entender o mundo.

Que cidade é esta? Com essa pergunta, Godard – diretor, ator, personagem – começa sua aula sobre Imagem e Texto em Sarajevo, mostrando uma foto de uma cidade destruída. Destituídos de qualquer legenda, os alunos tentam: Stalingrado, Varsóvia, Sarajevo, Beirute, etc. A imagem, porém, era da cidade de Richmond, na Virginia, destruída durante a Guerra Civil Americana. Imagem e texto. A imagem, portanto, busca no texto uma legenda, um complemento que lhe confere um sentido mais palpável. Ela tem seu significado, sua autonomia, mas carece de um lugar na História – um sentido que, por exemplo, seja compartilhado por todos aqueles que assistem à palestra de Godard.

A aula prossegue com a história de uma camponesa que disse ter visto a Virgem Maria, mas que não saberia descrevê-la. Diante de diversas imagens realistas da Virgem, ela só a identificou em uma imagem iconizada, a de Cambray .“Sem movimento, sem profundidade, nenhuma ilusão. O sagrado”, diz Godard.

Depois Godard propõe uma discussão sobre campo e contracampo, termos próprios do cinema, que ele transporta para a análise das imagens e da história. Godard metaforiza. É importante notar que para ele, campo e contracampo não são, necessariamente, visões completamente opostas uma à outra. Não basta mudar a posição de câmera. Tem que haver uma mudança também no ponto de vista da cena. Por isso, ao mostrar as imagens de um filme de Hawks onde homem e mulher aparecem em enquadramentos invertidos, ele diz que cada objeto a ser olhado pelo cinema merece um tipo diferente de olhar.

E aquilo que é ensinado para os alunos em sua aula, é mostrado para os espectadores do filme. Ou seja, o exemplo que Godard nos oferece para ilustrar suas idéias de campo e contracampo é a própria montagem de Nossa Música e, principalmente, da cena da aula. Percebemos como Godard afirma sua teoria ao usar de forma não convencional o campo e o contracampo. Isso implica numa atenção maior aos diferentes objetos que compõem uma cena. As particularidades são então expostas à luz, evitando-se assim uma visão tão errônea ou incompleta daquilo que é alvo da lente.

E isso é algo que pode ser transposto do cinema para a realidade. Judeus e palestinos, para Godard, ocupam as diferentes perspectivas que a relação entre campo e contracampo permite, porque cada um enxerga a sua história de maneira diferente, cada um constrói a sua versão da história. Enquanto os judeus entram na água para encontrar a sua terra prometida, os palestinos entram na água para ir ao encontro do afogamento. É a ficção que os explica, pois eles estão indo em busca de consumar suas profecias, onde realizarão grandes atos, que resultarão numa guerra sem fim no Oriente Médio. Os palestinos, por sua vez, são expulsos do território que ocupavam há muitos séculos e se tornam assim alvo de opressão, de incertezas, o documentário. Godard, citando Mahmoud Darwich, diz: “vemos que, na realidade, a verdade tem duas faces”. A do povo perdedor e a do povo vencedor.

Não se trata, é bom ressaltar, de uma correlação entre verdade/documentário e encenação/ ficção. A verdade tem sempre dois lados. E isso significa que tanto o documentário quanto a ficção nos transmitem apenas uma parte ou um lado da verdade. Essa limitação é inerente. Um filme que se pretende mais real que outro é no mínimo inocente.

Godard também confronta duas dimensões da imagem: a imaginação e a visão. E dá imensa importância ao movimento de abrir os olhos e ver algo, e fechá-los para imaginar. Talvez seja por sua crença nisso que em seus filmes ele costuma fechar os “olhos” da câmera em cortes abruptos e, ao deixar a tela preta, invoca os espectadores a imaginar. A própria trilha sonora do filme tem cortes que nos tiram do envolvimento passivo e invocam a imaginação. Num instante, a música que seguia um contínuo é silenciada, e impede que o espectador se deixe levar pelo filme. Godard desafia a denegação².

Ficção e realidade possuem, assim como o diálogo do campo e do contracampo, da visão e da imaginação, uma relação de complementaridade muito significativa. Uma relação que é inerente a uma imagem. Godard mostra como a ficção enriquece a experiência da realidade dando o exemplo do passeio de Bohr e Heisenberg pela Dinamarca. Quando se deparam com o Castelo de Elsinore, Heisenberg não o credencia como extraordinário. Mas Bohr diz que se lhe dissessem que aquele era o Castelo de Hamlet ele se tornaria extraordinário. A legenda então vem pra complementar a imagem. O castelo sem laço com o texto, se perderia da representação histórica que tem.

Já no fim de sua aula Godard diz que o princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Enquanto isso na tela, uma lâmpada presa por um fio balança como um pêndulo apontando para um lado e depois para o outro do quadro. Esse movimento metafórico revela a essência do próprio cinema, que dá a ver apenas o lado para o qual a luz está apontando. Godard, com esse movimento pendular, quer mostrar que apesar de o cinema não ter a capacidade de iluminar toda uma cena ao mesmo tempo, ele pode dar luz aos dois lados. O cinema tem a capacidade de fazer coexistir as visões e verdades que estão em lados opostos. A realidade não se apresenta de forma assim tão clara; ela, na medida em que ampara várias versões, nos limita. E é o cinema a arma para transgredir esses nossos limites de percepção. O cinema é feito para ampliarmos nossa visão e nossa imaginação, para "pensar o impensável”, como diz Godard. A experiência de fazer um filme e de assisti-lo é o momento que perpetua esse deslocamento de nossos olhares. Diretor, ator e espectador compartilham então de uma transformação mútua, no fim da qual, o mundo de cada um já não é o mesmo.

Godard na escolha do título de seu filme evidencia alguns aspectos aos quais Nossa Música se relaciona. O termo música se relaciona com a questão cultural em si, porque a música é uma das mais importantes expressões culturais de um povo. Mas quando Godard propõe uma música que não é do campo do "eu", mas do campo do "nós", ele parece propor a construção de uma experiência de coexistência e aceitação entre os povos da Europa, continente que abriga nações e grupos étnicos bem diferentes entre si. É a reivindicação de um ethos possível numa Europa fragmentada.


“A ficção é tão real quanto o documento”
Em Introdução a uma verdadeira história do cinema, ao comparar seu Uma mulher casada com Nanook, o esquimó, de Flaherty, Godard ensaia uma discussão sobre a ficção e o documentário. Para ele, o que veio a ser chamado de documentário no cinema não existia na literatura, pintura ou na música. “Não se diz ‘o rock é documentário’, e J.S. Bach é ficção”, diz. “A ficção é tão real quanto o documento, é um momento distinto da realidade”.

Afinal, o que é o documentário? O que é a ficção? Ao invés de simplificarmos estas perguntas, devemos pensá-las de forma ampla. A ficção sempre implica aspectos da realidade, assim como a realidade pressupõe elementos que se aproximam do ficcional. Há verdade tanto na ficção, quanto no documentário. Considerando o parentesco entre fotografia e cinema, também é válida a citação de Flusser: “pouco vale a pergunta metafísica: as situações, antes de serem fotografadas, se encontram lá fora no mundo, ou cá dentro, no aparelho? [...] As novas situações se tornarão reais quando aparecerem na fotografia. [...] A fotografia é a realidade” (FLUSSER, 2002: 32). Na indiscernibilidade entre o real e o ficcional, apontada por Deleuze, o filme constrói sua própria verdade.


Referências bibliográficas
COMOLLI, Jean-Louis. Voir et pouvoir. L’innocence perdue : cinéma, télévision, fiction, documentaire. Paris, Éditions Verdier, 2004.
_____. Sob o risco do real. In : Catálogo Fórumdoc.bh.2001. Belo Horizonte, 2001.
_____. A última dança: como ser espectador de Memory of the camps. In: Devires. V.3, n.1, p 8-45. Belo Horizonte. Fafich, jan-dez.2006.
DELEUZE, Gilles. As potências do falso. In: Cinema II : A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Sao Paulo : 1994.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo : Martins Fontes, 1989 .
MACHADO, Arlindo. O filme-ensaio. Anais do 26º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte-MG, setembro de 2003. São Paulo: Intercom, 2003.
MACHADO, Tiago Mata. O segredo atrás da porta do cinema clássico e a consciência necessária do cinema moderno. In: Devir – Cinema e Humanidades. Belo Horizonte: Fafich, 1999. MOULET, Luc. Jean-Luc Godard. In: BARBOSA, Haroldo (seleção). Jean-Luc Godard. Rio de Janeiro: Gráfica Record, 1968.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.


Notas
¹O filósofo francês Jean Baudrillard declarou, em 1991, que “a Guerra do Golfo não existiu”, em referência às suas teses sobre a onipotência das mediatizações no mundo atual. Para saber mais sobre o assunto, confira uma entrevista de Jean Baudrillard aqui:
http://pros.orange.fr/sheila.leirner/Site%20Entrevistas/Jean%20Baudrillard%201997.htm

²Dimensão estruturante do cinema, a denegação está presente em todo e qualquer filme. Por mais não seja, devido ao próprio fotograma. O espectador sabe bem que são imagens fixas colocadas em movimento, mas mesmo assim crê na imagem móvel. Como aponta Comolli, é condição inalienável do espectador esse crer sem deixar de duvidar, duvidar sem deixar de crer. O que Nossa Música faz é desafiar permanentemente essa condição.


.......................................................................................................................................................................

Ensaio 02
Notas na escuridão*

Por Bruno Fonseca, Clarissa Vieira, Lucas Creek e Marina Motta

“O princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para nossa noite”. Jean-Luc Godard em uma das cenas de seu último longa-metragem, Nossa Música (Notre Musique, Jean-Luc Godard, França/Suíça, 2004).

É essa uma das frases com a qual Godard se dirige aos estudantes de cinema durante uma palestra sobre “o texto e a imagem” em Nossa Música. Arriscamos dizer, a frase transpassa a obra como um todo, revelando e sendo revelada por características comuns aos trabalhos de Godard e a outros pensadores. Nossa Música permite uma série de abordagens, entretanto, este ensaio se debruça sobre a maneira como o filme contesta, de certa forma, modelos hegemônicos cinematográficos e apresenta um novo valor de experiência estética e política exercendo a tentativa de, através do cinema, rememorar as vozes daqueles que são os vencidos. A violência, o conflito, a memória e a relação entre o um e o outro são a linha guia deste trabalho. Apontar o cinema para a noite humana. Iluminar a nossa noite não é só princípio de Nossa Música, mas também, ousamos dizer, tentativa do cinema godardiano nas últimas décadas.

O cinema do impensável
“Ao longo de sua vida e de sua filmografia, Godard manejou de inúmeras formas e em diversas ocasiões, as forças de criação próprias do cinema” (GUIMARÃES, 2007, p.6). Através dessas forças de criação que Godard discute questões da vida humana e faz do [seu] cinema um instrumento de reflexão - não só conteudístico, mas também no aspecto formal, e mesmo reflexões sobre o ato de representar a realidade, envolvendo temas como a ficção e o documentário, o real e o imaginário.

Godard trabalhou como crítico na revista Cahiers du Cinéma nos anos 1950, iniciou na direção em 1959, com Acossado, e foi nos anos 1970 que abandonou o cinema comercial para fazer filmes considerados mais engajados e militantes. Com François Truffaut, Claude Chabrol, Jacques Rivette e Eric Rohmer, principalmente, Godard foi um dos idealizadores do novo movimento do cinema francês, a Nouvelle Vague (expressão lançada por Françoise Giroud, em 1958, na revista L’Express, ao referir-se aos novos diretores).

Sem grande apoio financeiro, os cineastas da Nouvelle Vague se inserem nos movimentos de contestação dos anos 1960, unidos pela vontade de transgredir as regras normalmente presentes na realização de filmes considerados comerciais. Marcam esse movimento a ruptura com os moldes narrativos do cinema estabelecidos até então e o amoralismo presente nos aspectos formais da narrativa fílmica: nos diálogos e, principalmente na montagem, por vezes inesperada e sem concessões à linearidade do narrar. O movimento significou um modo mais livre de fazer cinema também embasado na chamada política dos autores. Nesta teoria o diretor é total responsável pelo filme, sendo este a representação de suas idéias ou ainda sua forma de ver o mundo. Os adeptos da nova onda francesa promoveram inovações na estética e na narrativa cinematográfica.

Desde que estreou na direção até hoje, Godard conserva sua marca autoral em seus filmes. Segundo Tiago da Mata Machado, “Jean-Luc Godard era um cineasta do instante” (MACHADO, 1999, P.77) como Jean-André Fieschi ressaltava em A dificuldade de ser Jean-Luc Godard:

Não há em Godard uma intuição do tempo em progressão – ele é exatamente o contrário de um cineasta da dureé – mas uma prodigiosa intuição do instante, tomado em toda a sua complexidade. Cada momento é privilegiado e cada plano, tendo alcançado seu equilíbrio como o personagem provisoriamente em seu meio, parece ameaçado por alguma força obscura. (FIESCHI, 1968 apud MACHADO, 2001, P.77).

O que ocorre é que Godard pensa em uma forma mais reflexiva de realização cinematográfica, criticando aquela forma de cinema que busca apenas entretenimento, que não suscita a reflexão, cuja feitura está intimamente ligada com os modos de produção industriais. Além disso, o diretor é adepto da experimentação. Busca uma expressão própria com um cinema anti-ilusionista que provoca o espectador em um intencionado distanciamento crítico.

Godard faz de seu cinema auto-reflexivo. Montagens anti-naturalistas, que mostram a todo tempo que estamos diante de um filme, rupturas entre imagens e diálogos, relação particular entre imagem e som, idéias por vezes fragmentadas no lugar de narrativas fortemente lineares são características que marcam o cinema godardiano. O trabalha com o contraste que, por sua vez, explicita marcas enunciativas: planos que não se sucedem pacificamente, cortes que arrebatam a narrativa, chamando, a todo momento, o espectador a refletir sobre o filme ao qual assiste. São filmes que se explicitam como representação (do mundo, da realidade) que são: enquadramentos que fazem o espectador perceber que diante dele existe uma representação, de certa forma interpretada, carregada de determinado valor.

Se não há mais preocupação em fingir o real, em brincar de faz de conta, não há mais porque manter regras, como as que justificam os ângulos de câmara ou tornam os cortes imperceptíveis. Ao contrario, é necessário que o filme seja presente como linguagem, enquanto filme mesmo. (BERNARDET, 2000:107).

Se o cineasta francês filma privilegiando as sensações, validando a experiência cinematográfica quando promove reflexão, em Nossa Música a arte da montagem e os contrastes abruptos conjugam uma experiência com ares de vocativo: o espectador é chamado a sair de sua posição habitual de contemplação tranqüila. A experiência se descola do contemplar e passa para o deslocar. Resgatando Deleuze, Nossa Música, em especial, mas tantas outras obras de Godard almejam distância de um movimento sensório-motor, ou seja, de uma contemplação clichê, rasteira, desmobilizante[1]. A sensação em Godard busca sair do ato-reflexo para obter o ato-reflexão. Aqui se faz uma ironia entre a pura contemplação frente a uma imagem espelhada e o posicionamento crítico, simbolizado pelo ato-reflexão, que se dedica muito mais a uma análise do que a uma simples observação. Não há como escapar de um jogo de palavras entre o ato-reflexivo e o narcisismo mitológico, embasbacado em sua própria imagem sem ao menos dar-se conta do suporte – água – e das armadilhas que ele lhe reserva. A reflexão rasteira tem algo de narcisista, muitas vezes se prendendo a esquemas de identificação e descartando um distanciamento crítico.

Seguindo esse pensamento Godard defende não somente um novo estilo de pensar o processo do filme, mas também acerca do que deve ser o papel do próprio cinema. Desde o início de seus trabalhos, tanto como crítico, quanto como realizador, adotou uma postura opositora ao cinema fácil, descomprometido com a reflexão e a percepção do fazer fílmico:

O cinema não soube cumprir seus deveres. É uma ferramenta sobre a qual nos enganamos. No começo, acreditamos que o cinema se imporia como um novo instrumento de conhecimento, um microscópio, um telescópio, mas rapidamente, impediu-se que ele fizesse seu papel. (GODARD apud MACHADO, 1999: 66).

Além disso, segundo Machado, “Godard acredita que o cinema foi feito para pensar o impensável. E o impensável é a vida”. (MACHADO, 2001: 70). O impensável são os sons da música humana, essa que é repleta de conflitos agudos e guerras. Sons da “nossa música”.

Nosso dia, mas também nossa noite
Nossa Música orquestra tons tipicamente humanos: as dissonâncias das batalhas, a desarmonia do conflito; mas também o perdão, a reconstrução, a composição com o outro. Nossa noite são penúrias humanas que se quer ressaltar, mostrar e, então, possibilitar reflexões. A construção ímpar de Godard revela tais reflexões e se utiliza das estratégias godardianas para possibilitar que tais questionamentos venham à tona, tanto os conflitos em si, quanto suas re(a)presentações no cinema. Entre vários temas, Nossa Música aborda a temática da guerra, e das suas representações, além de como os modelos de narração dos conflitos carregam diferentes implicações para vencedores e vencidos.

O filme é disposto em reinos, analogicamente ao universo de A Divina Comédia de Dante Alighieri. Inferno, Purgatório e Paraíso, que se sucedem, nesta ordem, ao longo da obra. Esta disposição, dentre outras conexões, remete a esta constelação humana de conflitos e perdas, reconciliação e memória, reconstrução e esperança. Três reinos que, juntos, simbolizam uma dança de paz e guerra: não seriam as três facetas deste mundo que vivemos?

O Inferno é o antro da desarticulação, da violência irrestrita, do horror. Cidades devastadas, crianças em meio à luta, homens e mulheres mortos. De Hitler a Coppola, de índios a japoneses, a guerra assume todas as faces, é evento universal. Godard ataca: além da crueldade dos conflitos em si, realiza-se uma segunda crueldade que é o obsceno destas imagens. Segundo Baudrillard, “o espetáculo da banalidade, que é hoje a verdadeira pornografia, a verdadeira obscenidade – a da nulidade, da insignificância e da platitude.” (BAUDRILLARD, 2004, p.21) Para o crítico francês, o uso ilimitado do espetáculo da violência mortifica o espectador: é uma cessão desenfreada à pulsão escópica, o desejo do tudo ver, do tudo “teleacompanhar”. A obscenidade é este seqüestro da capacidade reflexiva, embevecida num carrossel de imagens que raramente dizem algo além de sua superfície sangrenta.

Paulo Ricardo Almeida, ao refletir sobre Nossa Música, corrobora a denúncia do inferno godardiano sobre as narrativas que tudo expõem. O autor crê que se configura um observador voyeur, imbecilizado desse “inferno”: "Cúmplices de sordidez a qual serve para engessar a subjetividade, acostumar os olhos e a mente à destruição, destruir a capacidade de se emocionar em detrimento do hábito de não se importar." (ALMEIDA, 2004).

O tudo exibir finda por não exibir nada. Re(a)presentar as guerras em uma pretensa naturalidade é também um ato ideológico. O discurso asséptico, que nem ao menos se assume como discurso, mina a dúvida, o questionamento. O obsceno espetacularizado é desmobilizador. São tantas guerras, tantas atrocidades, tanto sofrimento que nós, espectadores dessas imagens nos tornamos apáticos, pelo simples sentimento de que nada podemos fazer.

Susan Sontag, em seu Diante da Dor dos Outros coloca a idéia de que não é a quantidade de imagens de dor e sofrimento, a todo o momento oferecidas ao nosso olhar, que nos torna insensíveis e desmobilizados, mas a passividade, o sentimento de que estamos distantes da solução daquele problema que nos torna espectadores apáticos. E, em uma sociedade espetacularizada, a guerra também vira espetáculo e aparece como um filme de ação, não nos atinge mais como verdade pungente, o que contribui ainda mais para nossa postura passiva. Vale relembrar a frase de Abel Gance: “Vós que entrais no inferno das imagens perdei toda esperança” (GANCE apud VIRILIO, 2005: 69).

O purgatório é dos reinos o mais longamente retratado no filme. Passa-se em Sarajevo, Bósnia, com todos os esforços de reconstrução após a guerra. Não é por acaso que Nossa Música focaliza os Encontros Europeus do Livro, que ocorrem na cidade. A Poesia e a Literatura são também momentos desta reconstrução. As artes são também uma forma de um povo se reencontrar, lutar por sua sobrevivência, por suas causas. Pode-se pensar Os Encontros Europeus do Livro como um exemplo dessa reconstrução. Um evento que reúne arte e artistas, sobretudo de diferentes origens, numa constelação onde a diversidade é norma e a expressão artística integradora.

Sarajevo pode ser comparada a um estágio pós-inferno. Arrasada pelos conflitos, a cidade foi bombardeada nos prédios e nos laços interpessoais. A conversa no carro, no início do filme, é um testemunho deste ataque duplo: a violência deixa marcas, de horror, de desconfiança. Como ressalta o escritor e poeta espanhol Juan Goytisolo, quando da conversa no carro sobre Saravejo, sobre a guerra: “o sobrevivente não é só o outro, é um outro”. Não são somente outras pessoas que sobrevivem a uma guerra, os sobreviventes são também outros. A guerra muda as pessoas de uma forma arrebatadora quando entra em suas vidas de maneira a devastar tudo que já foi construído.

“A regra é sobreviver. O pesadelo será de quem ficar pelo caminho”, continua Goytisolo. Nossa Música denuncia como marcas de guerra atingem algo muito mais simbólico e indentitário do que apenas físico. Este um outro sobrevivente carrega ruínas nas casas, mas também na memória. Paul Virilio, em seu Cinema e Guerra, ilustra este ataque profundo causado pelo conflito:
A guerra não atinge somente a vida material de um povo, mas também seus pensamentos... E aqui voltamos a esta noção fundamental: não é o racional que conduz o mundo, mas as forças de origens afetiva, mística ou coletiva que conduzem os homens [...] as forças imateriais são as verdadeiras condutoras dos combates. (VIRILIO, 2005: 67)

Frente ao desgaste das batalhas, Sarajevo tenta uma reorganização. Isso se faz perceber nas palavras da jornalista israelense Judith Lerner que, quando interrogada sobre “por que Saravejo”, responde que vê ali a possibilidade de reconciliação, ainda remota no Oriente Médio. Analogia do purgatório de Dante, onde se espera a ascensão na montanha dos círculos ascendentes, a expiação dos pecados. Na obra, o limbo é local de espera, reservado àqueles com faltas mais amenas em relação aos condenados aos círculos inferiores do inferno. Purgatório é acima de tudo um sítio da ânsia, desejoso do sufrágio, mas que tem de conviver com os crimes não quitados, e as lembranças do terror sussurrando ao ouvido.

Memória dos sobreviventes
O sobrevivente não é só o outro, ele é um outro. A regra é sobreviver. O pesadelo será de quem ficar pelo caminho.” (Fala do personagem Goytosolo, em Nossa Música, na cena em que atravessa em um táxi a Sarajevo em reconstrução)

"Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. [...] Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem como o vencedor do Anticristo. O Dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer." (BENJAMIN, 1994: 224-225)

Walter Benjamin, em suas teses Sobre o conceito de história – que, nas palavras de Jean Marie Gagnebin, não são “apenas uma especulação sobre o devir histórico ‘enquanto tal’, mas uma reflexão crítica sobre nosso discurso a respeito da história (das histórias)” – suscita interessantes reflexões sobre o discurso histórico, que estão também presentes no filme. Como nos explica Jean Marie Gagnebin:

[...] [Benjamin] critica duas maneiras aparentemente opostas de escrever a história que, na realidade, têm sua origem em uma estrutura epistemológica comum: a historiografia ‘progressista’, mas especificamente a concepção de história em vigor na social-democracia alemã de Weimar, a idéia de um progresso inevitável e cientificamente previsível (Kautsky), concepção que, conforme demonstra Benjamin, provocará uma avaliação equivocada do fascismo e a incapacidade de desenvolver uma luta eficaz contra sua ascensão; mas também a historiografia ‘burguesa’ contemporânea ou seja, o historicismo, oriundo da grande tradição acadêmica de Ranke a Dilthei, que pretenderia reviver o passado através de uma espécie de identificação afetiva do historiador com o seu objeto. (BENJAMIN, 1994: 8)

Benjamin não propõe nem uma narração enamorada com o progresso tecnológico, visto os males que este também pode acarretar e, sobretudo, por este discurso apagar as marcas dos vencidos, nem uma memória afetiva, que se liga ao passado criando vínculos de identificação. E, a partir da crítica a essas duas maneiras de ver a história, que “segundo Benjamin [...] se apóiam na mesma concepção de um tempo homogêneo e vazio (teses 13 e 14), um tempo cronológico e linear” (BENJAMIN, 1994: 8), Benjamin levanta a necessidade de se construir uma nova história, a materialista.

Trata-se, para o historiador materialista – ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas -, de fundar um novo conceito de tempo, “tempo de agora” (“Jetztzeit”), caracterizado por sua intensidade e brevidade, cujo modelo foi explicitamente calcado na tradição messiânica e mística judaica. (BENJAMIN, 1994: 8)

Nossa Música tenta romper com os narrares totalizadores, com uma visão histórica linear. Uma visão que retrata o lado dos vencedores, e não o dos vencidos. Isso se torna patente na entrevista que a jornalista Judith Lerner faz com Darwich, em que ele diz “A verdade sempre tem duas faces. Nós ouvimos a voz da vítima troiana pela boca do grego Eurípedes. Tróia não contou sua história”. Darwich fala sobre a importância dos poetas na escritura da história, indagando: “Um povo ou um país que tem grandes poetas terá o direito de vencer um povo que não tem poetas? Pode um povo ser forte sem escrever poesia?”. Darwich quer falar em nome dos ausentes, em nome do poeta de tróia.

Nossa Música conclama a necessidade desse falar. Do campo e do contracampo. Dos diversos lados da história e da necessidade de deixar que “a história admita diversas interpretações diferentes, que, portanto, ela permaneça aberta, disponível para uma continuação de vida que dada leitura futura renova” (GAGNEBIN, 2006: 24).


Notamos aqui a importância do conceito de rememoração [Eingedenken] de Benjamin. Para o autor, reviver a memória é mais do que celebrar datas solenes, promover eventos, erguer monumentos. Benjamin ressalta que rememorar é uma posição ativa, impregnada de cuidado com o presente. Como cita Gagnebin:
Um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado, realizado por meio de um esforço de compreensão e de esclarecimento [Aufklãrung] – do passado e, também, do presente. Um trabalho que certamente, lembra os mortos, por piedade e fidelidade, mas também por amor e atenção aos vivos. (GAGNEBIN, 2006, p. 30)

A rememoração é um compromisso de evitar que horrores do passado se repitam, muito distinta de apenas um olhar contemplativo e apático em relação aos conflitos anteriores. Como afirma Adorno, citado por Gagnebin, o imperativo categórico imposto pela violência, pela morte e pela destruição faz emergir a necessidade de voltarmos nossas reflexões a uma intervenção ativa no presente.

No fim do Purgatório, a cena de uma lâmpada oscilando na escuridão, de um lado ao outro, quase saindo de campo, é marcante desse compromisso de Godard. O narrador da cena descreve o princípio do cinema: “Ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa Música”. No imaginário a certeza seria possível, mas não no real, permeado de incerteza, diz a narração. E esse apontar vai além de dar a voz ao discurso dos vencidos: é reconhecer sua existência.

Arte como forma de resistência
Mahmoud Darwish indaga: é possível um povo ser forte sem escrever poesia? O poeta palestino explica no filme a tensão oprimido-opressor e como este embate é também um embate discursivo, de múltiplas facetas: verdades e histórias. Cita: “Quem escreve sua história herda a terra de suas palavras”. “A língua obediente como uma nuvem” a que se refere é um ápice de dominação, subjugando a própria memória de um povo.

A memória é outro tema fundamental em Nossa Música. Na entrevista a Judith Lerner, Mahmoud Darwish acusa que o interesse na Palestina é antes conseqüência desta ser inimiga de Israel do que significar algum interesse por si só: ”o interesse recai sobre vocês, não sobre nós. Nós tivemos o azar de ter por inimigo Israel. Ao mesmo tempo, tivemos a sorte de ter por inimigo Israel. Vocês nos deram a derrota e o reconhecimento”. É dúbia a relação com o inimigo, com o outro.

A passagem da entrevista a Darwich é emblemática. O poeta, palestino, conversa com a jornalista, israelense. São dois lados de um conflito violento e, aparentemente insolúvel, almejando o mesmo: a paz, a reconciliação. Como diz a personagem que descreve a história da ponte para Judith, “a relação entre mim e o outro não é simétrica. A princípio pouco me importa o que é o outro em relação a mim. Problema dele”.

Esta relação com o outro também está presente na cena em que a jornalista contempla a ponte de Mostar, enquanto folheia um exemplar de “Entre nós”, de Lévinas. “É preciso restaurar o passado e tornar possível o futuro. Combinar o sofrimento com a culpa”, diz o narrador. Ao que segue a frase de Lévinas dita por Judith Lerner: “Somos todos culpados de tudo e de todos e eu mais do que os outros”.

Durante a entrevista, estão ali um e outro, outro e um, conversando sobre uma saída para conviverem pacificamente sem necessariamente serem idênticos, continuando sendo um e outro. Em uma relação que não é e nunca será simétrica devido às diferenças. A busca deve ser pelo respeito a elas. A dessimetria traz o imperativo da ajuda. É quando o outro mais necessita de ajuda, quando as desigualdades de condições se intensificam, mais se torna necessário perceber este outro.

Através do embate, o filme pode ser visto como um defensor do direito de resposta dos vencidos. Godard afirma preferir as histórias cujos narradores tiveram suas cabeças decepadas. Os vencidos teriam este espaço justamente quando são desconstruídas as narrativas lineares, quando os conflitos são desnaturalizados e se abre brecha para o outro, para a nova versão. Diversidade na oposição campo e contracampo.

Campo e contracampo, termos do cinema, são aqui usados por Godard como metáforas da própria situação humana do conflito. Campo, espaço focalizado pela câmera; contracampo, plano filmado de um ponto de vista contrário ao ponto de vista da cena anterior. O cineasta apresenta as duas noções ao mostrar a oposição das representações fotográficas entre palestinos e israelenses. São, em grau último, pontos de vista diferentes, conflituosos. No embate, as partes dialogam em impasse, com opiniões que se chocam, dois lados de um mesmo problema.

Esta abordagem feita por Godard em sua aula de cinema a que Olga Brodsky assiste é uma divisão entre opiniões. O povo judeu, vitorioso com a criação messiânica de Israel, frente ao palestino, ignorado, flagelo “muçulmano” dos campos de concentração, termo que advém justamente dos judeus, de seu sofrimento. A vitória judaica torna-se a certeza ficcional, ganha o mundo. A documentação do palestino minoritário se esvai. Cabe perguntar, como os dizeres que Olga lê ao fim da aula: “e a libertação? E a vitória?”.

Admitir o outro do outro lado é necessário para que este tenha voz. Assim, aportamos na relação entre as personagens Judith e Olga, o duplo que se reconhece. São duas lado a lado, o um e o outro. Judith que empreende uma tentativa de reconciliação política, Olga que faz da arte seu meio de expressão. Não são forças opostas, são forças que se reconhecem. Além disto, são forças que percebem o outro sem voz, o tornado invisível, que Godard afirma ser o princípio do cinema. É necessário reconhecer nossa noite e não nos ofuscar com a luz.

Com a partida de Olga para o paraíso, Nossa Música chega ao seu último reino. Seu destino segue os dizeres que ela lê na aula de cinema: “Este será meu martírio. Esta noite estaremos no paraíso”. O paraíso não é garantia de redenção, mostra Nossa Música, muito embora seja freqüentemente associado a essa possibilidade, não há indícios de depois. Não existem conflitos, muito embora, ironicamente, o éden seja guardado por fuzileiros navais norte-americanos. Olga não consegue vislumbrar de onde veio. Torna-se uma imagem distante, quase imaginária. Novamente alusão à Alighieri: o rio que, no filme, circunda o paraíso, pode ser tomado em consonância com o rio Lete, cujas águas provocam esquecimento necessário às almas para perdão máximo dos pecados. Lete significa esquecimento, olvido, ocultamento. O paraíso é, acima de tudo, paz, ausência de culpa. “[Olga Brodsky] subverte o gênesis, pois assume o papel de Eva sem se preocupar com as conseqüências negativas de comer a maçã”. (ALMEIDA, 2004).

O falso atentado de Olga carrega um grande peso simbólico. Com seu golpe ”literário”, a jovem representa a força da arte, da poesia, da expressão, como a forma legítima e duradoura de um povo perpetuar sua resistência. Bombas teriam ação na política; os livros, na memória. A partida de Olga é antes um desaparecimento do que uma morte. Como afirma Paul Virilio, o totem dos mártires, o legado das ideologias, a força dos mitos está em parir um material simbólico inacessível às armas, mas gerador de guerreiros. Os fragmentos de recordações e mitos que constituem a memória são tão cruciais quanto blocos de concreto como os da ponte a ser reconstruída em Mostar. Nas palavras de Virílio:

A nova autoctonia do povo judeu baseia-se na presença viva na memória de um povo de seis milhões de desaparecidos que devem reaparecer em algum lugar. [...] Negar o grande numero de vítimas, como ocorreu em Nuremberg, é um ataque à existência política do estado de Israel mais forte do que violar militarmente suas fronteiras. (VIRILIO, 2005: 72)

O paraíso é mais uma dúvida do que certeza na canção humana, canção que Nossa Música desvela, desmascara, exigindo do espectador reflexão. Isto porque as grandes melodias pré-fabricadas emudecem os vencidos, restando a eles uma ou outra nota perdidas em meio a um discurso de segunda voz: notas na escuridão. E Nossa Música põe em cena essas pequenas notas em sua face mais atuante, mais expressiva.


Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Paulo Ricardo. Revista Contracampo de Cinema, 2004. Disponível em Acesso em 30 de out. de 2007.
BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras Escolhidas. 1994
BERNADET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 2000.
DELEUZE, Gilles. As potências do falso. In: A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990. EDUARDO, Cléber. Época On-line, 2004. Disponível em Acesso em 17 de out. de 2007. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Brasiliense, 2006. GUIMARÃES, César. Apresentação. In: Devires - Cinema e Humanidades. Vol. 04. N.01. Belo Horizonte: Fafich, 2007.
MACHADO, Tiago da Mata. O Segredo atrás da Porta no sonho do cinema clássico e a consciência necessária do cinema moderno. In: Devir- Cinema e Humanidades. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
NETO, Alcino Leite. Folha On-line, 2004. Disponível em . Acesso em 17 de out. de 2007. SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. Companhia das Letras, 2003.
VIRILLO, Paul. Guerra e Cinema: Logística da percepção. São Paulo: Boitempo. 2005.

Nota:
[1] Deleuze é citado neste trecho para elucidar diferenças entre a simples contemplação de um filme e a experiência diferenciada, que presumiria no mínimo uma transformação no papel do espectador. Esta nova postura, percebe-se, é objetivo constantemente visado pelo cinema godardiano.